segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

OLHAR CUBISTA

" Como quereis que os outros vos façam, fazei também a eles" (Lc, 6, 31)
Foi com um olhar cubista de um Picasso triste que o morador de rua olhou para os seus agressores.
O horror escorria-lhe pelas frestas dos dentes da boca de desespero. Enquanto isso, no silêncio da madrugada, despejavam socos e pontapés.
O abstrato o agredia, sorvia-lhe o sono a violência sem significação. E numa cadência de chutes e socos o mundo perdia seu sentido.
O andarilho pedia que parassem, mas a violência era tanta que foi preciso acreditar que um carma era purgado. Nas silhuetas do que lhe sobrava da vida, o espectro do absurdo deixou grafado, como tatuagem, sua marca incurável: cicatrizes de violência, negativas de amor.
Restaram na noite um grito de tristeza, um choro desassossegado daquele que é órfão da vida. Restaram na noite olhos marejados de lágrimas sufocadas, evidências de uma Guernica pessoal.
Sobravam dele apenas retratos de uma poesia triste, onde se cogita não haver vida nem sentido nos dias que passamos. Sobravam dele apenas inspiração para orações dos fiéis e presságios de dias estranhos para os mais velhos. Arrematava consigo todos os olhares do povo, todo o marasmo de mais um dia era quebrado pela imagem de sua face ensangüentada.
E por um instante apenas se sentiu gente, mesmo que para tanto tivesse que sentir dor.

Rafael Guerreiro
*Imagem: Guernica, Pablo Picasso, 1937

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

FRANCA DOS NATAIS BRILHANTES

Tudo iluminado, lojas abertas e cheias. O período do Natal é realmente um momento para reflexões, onde a sensibilidade fica mais a mostra.
Neste tempo, ouve-se falar de muitas alegrias e confraternizações. Há até quem fique mais generoso. Neste tempo não há espaço para crises, quiçá brigas e desentendimentos. O espectro natalino realmente meche com a alma do povo não só aqui em Franca, mas em qualquer lugar do mundo cristão.
As ruas são então decoradas com lindas luzes e ornamentos natalinos. A cidade precisa estar linda para receber o Menino Jesus que está prestes a nascer. E o povo adora, todos passeiam pelas ruas gastando seus décimos terceiros salários. Curioso como o encantamento e a sedução pelas compras transfigura o espírito. Talvez seja a alegria do consumo, talvez apenas a necessidade social de se ver incluído na moda vigente.
Mas, curiosamente, quando o dia vinte e cinco passar e com ele ceder o frisson das compras, ninguém restará que tenha se lembrado do Menino Jesus que, em um dia apenas, já terá crescido e perderá a graça dos bebês, deixará a manjedoura e partirá para o calvário num caminho que ninguém gostaria de acompanhá-lo.
Em um dia apenas os brinquedos e eletrodomésticos com os quais sonhamos o ano inteiro restarão já velhos e novos sonhos de consumo se avizinham. Enquanto isso, pelo caminho do calvário, Jesus, agora homem, ergue solitário sua cruz. Enquanto durar o caminho, desmancharemos os enfeites e apagaremos as luzes que enfeitaram nosso mundo imaginário, onde não há espaço para os horrores com os quais lidamos e de que tanto fugimos.
Olhem todos porque já no dia vinte e seis Jesus parte para o calvário. Curioso como até mesmo Ele deve se apressar, porque logo chega a Páscoa, linda e adocicada com seus chocolates e coelhinhos imaginários, que tanto servem para fazer-nos esquecer o sangue alheio.


Rafael Guerreiro

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

AS TORRES DA CAPELA

Eis que naquela noite o vento soprou forte. O movimento do vento refletia a ansiedade do primeiro beijo. Do lado de dentro, mãos entrelaçadas e abraços carinhosos. Beijos púrpuros de plenitude. Espíritos embalados pela dança do incenso. Toques sutis de aconchego e paz.
De longe, era possível ver as torres da capela. Traziam consigo uma igualdade ímpar. Eram duas, mas tinham um só ponto em comum, um único céu. Por dentro, duas torres, mas um só encontro.
Incenso, desfecho, destinos...O invisível dançava aos olhos delas como que profetizando suas vidas.
O incenso ardia na noite, propagava odores de alfazema e alecrim. Deixava virgem um rastro de amor.
Eros ou Lilith?

Rafael Guerreiro

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

CINZAS DO COTIDIANO


Ao meu lado, apenas o que sobrou do copo de café já frio. Mas por aquelas árvores, por aqueles bancos perscruto sons do passado e, como quem renasce, passo a escutar ruídos antigos, frases e luzes carregadas de história. Aos poucos, ao meu lado surgem protagonistas do mundo de lá, onde o vento é livre e sensível. Rodeiam-me amigos do passado, das alegrias e dos diálogos. Rodeiam-me amores de um beijo apenas. Ao meu lado, histórias fazem adjetivar o dia.
O vento trouxe consigo os ciganos de minha memória. Trouxeram presentes, juntaram-se a mim e ceiamos juntos. Por alguns momentos, deixei de lado o cotidiano para adentrar ao mundo colorido de lá, das cores e dos sons das histórias.
Se busco este mundo é porque pessoas já foram e levaram consigo parte de mim em histórias inacabadas. Momentos incompletos me escaparam das mãos e voaram para longe, deixaram marcas tão lindas quanto uma revolução sem sangue. Deixaram porvir o sabor da descoberta e, para se comunicarem comigo, elegeram a poesia. São momentos únicos, leves como água, claros, límpidos e rápidos, mas deixaram marcas profundas, capazes de tombar o dia e reduzi-lo a cinzas levadas pelo vento.
Por estes momentos, carrego lembranças raras, bem guardadas. Por estes momentos, recrio o mundo em infinitas variações de cores e deixo que meus sentimentos ao vento lancem as cinzas do cotidiano.
Rafael Guerreiro

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

AGONIAS DO PARTO

Amigos, hoje tentei escrever, mas as palavras fugiam, as idéias esvaíam-se em lapsos cerebrais de sinapses mal-feitas. Tudo não passava de clichês eventuais, delírios passageiros que não traduziam mais que um simples déjá vu. E do insight, eu não conhecia mais que o nome.
Então resolvi escrever sobre o meu fracasso em tentar escrever algo. De alguma forma precisava compartilhar minhas limitações com os meus poucos leitores.
Gosto de escrever, mas as vezes é difícil. Não é falta de material, o cotidiano me fascina. Muitos de meus contos e crônicas saíram de pequenas notícias que li, ou de qualquer coisa muito insignificante que passava pelo dia. Um pássaro, um feriado, notícias no jornal, um homem que passeava de bicicleta fazendo vozes estranhas, como de menina, sei lá, tudo parece uma sopa rica de idéias. Mas às vezes, para meu desespero, de repente tudo se mostra pobre, estéril.
Crises de um espírito tão meu, tão único. E hoje eu o enganei.
Só consigo escrever quando estou feliz ou triste, mas nunca quando o desânimo se abate sobre mim. Mas hoje, pude perceber seu mecanismo e escrevo agora drogado pelo desânimo. É uma forma de negá-lo, de construir frases como quem constrói uma muralha de proteção, uma casamata. E a característica essencial que faz de uma casamata o que ela é, é justamente permitir o revide, o contra-ataque. E é isso que faço hoje, contra-ataco meu espírito, ou o desânimo que teima em se abater sobre ele.
Resisto e minhas idéias dão à luz. Por hoje não me calarei, mas antes trarei ao público expressões que talvez nunca tivessem nascido se o parto fosse interrompido.
Nunca o “backspace” trabalhou tanto! Parece irônico, mas prossigo.
(Pausa, preciso pensar!)
Estou de volta e retomo meu assunto. Construí uma casamata. E anuncio ao mundo um pequeno parto, feio e brilhante. O que veio dali está banhado em sangue, mas é gente. Mal andou e já começou a apanhar, mas é forte, agüenta.
Mesmo que não sejam palavras de um Hemingway, ou Dostoiévsky, Drummond ou Vinícius, ainda são as minhas, idiossincrasia plena de um pobre único.
Então era verdade! Sabia que não seria em vão escrever. Lembrei-me de uma nobre lição que em muito se aplica ao dia de hoje. Certa vez Vinícius me intimou, assim como fez com tantos. Disse: “Vamos, escreve, ó mascarado! Escreve uma crônica sobre esta cadeira que está aí em tua frente! E que ela seja bem-feita e divirta os leitores.” Pois bem, hoje escrevo sobre minha casamata, e que minhas palavras sejam vivas e não soçobrem antes do parto.

Rafael Guerreiro

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

ENQUANTO UM CHORAR...

"...a morte de qualquer homem diminui a mim, porque na humanidade me encontro envolvido..."
in Meditação 17, John Donne

Enquanto um chorar, toda consciência é pesada, todo mar é agitado e não há abrigo nos corações. Enquanto um chorar, meus sonhos não passam de silhuetas de um paradoxo e meus sentimentos se transfiguram em simulacros de idéias vazias.
Não há meios de banir a tristeza, não há formas de evitar o derradeiro encontro consigo mesmo, onde no íntimo imago a imagem do irmão brota triste. Somos irmãos e, enquanto um chorar, não desejo o calor dos sorrisos. Somos irmãos e cada pessoa é parte de mim. Cada universo, cada consciência discreta, frágil, deseja a felicidade dos sorrisos simples e dos apertos de mão. Enquanto um chorar, um vento fúnebre deixa um ranço de morte.
Dobram-se os sinos, afirmou John Donne. E é por nós que eles dobram, por cada perda, por cada instante em que nos diminuímos.
Em cada sofrimento que desprezamos, em cada irmão que ignoramos, entre os sinos dobrados, um réquiem é composto.
Ouve-se o réquiem a cada instante, composto de notas amargas de orgulho e soberba. Na imagem do mendigo ele é encontrado. Pelos hospitais e seus doentes terminais pode-se ouvi-lo. No centro e na periferia já o deram como certo. Nas igrejas também o perscrutam, entre um e outro cântico de louvor.
Dia a dia ele nos acompanha, sempre que negamos uns aos outros. Caminha conosco desde os tempos imemoriais, em cada guerra, em cada morte. Não o rejeitamos, somos seus filhos adotivos, do réquiem e dos sinos, pois não há paz, quebram até as flores*.


Rafael Guerreiro

*Filha de Henrique Dussel, com 7 anos de idade.

domingo, 4 de novembro de 2007

DIATRIBE


Era Finados e o cemitério estava concorrido. É tradição em minha família que visitemos os nossos mortos nesta época do ano. Neste feriado decidi que iria sozinho.
Comprei um vasinho de flores e fui ter com os mortos. Pelo caminho pude perceber as pessoas rezando em frente aos túmulos dos extintos parentes seus. Uns rezavam, outro se ocupavam de limpar os túmulos, outros ainda apenas choravam transbordando uma tristezinha antiga, daquelas que nunca se extinguirão.
Quando cheguei ao túmulo dos meus avós, ali rezei. Depositei o vasinho de flores que comprei para eles e rezei com a cabeça baixa. Uma tristezinha daquelas se abateu sobre mim e de súbito chorei. É uma sensação hipnótica, por onde o presente se desfaz em pétalas de solidão e resignação. As lembranças de todos voltam a me visitar e o presente parece ceder espaço ao passado já consumado. Lembro-me agora das festas, das histórias contadas em tons fantásticos, da sensação de acolhimento, mas também das brigas e das palavras ásperas. São fatos que jamais voltarão, exceto pelas lembranças que morrerão comigo.
Curiosamente, a saudade que carrego por todos os que já partiram suscitou em mim a vontade de querer resolver todas as diferenças que possuo com os meus próximos. Em mim se criou um anseio de resolver as questões pendentes, de pedir perdão pelos erros passados, de poder amar e guardar sempre mais e mais das boas memórias.
Era uma sensação que me preencheu por alguns instantes, até que um singelo bem-te-vi pousou sobre a cruz do túmulo. Era um bem-te-vi já velho, trazia consigo um ranço de morte, possuía a penugem esfacelada e trazia em uma das patinhas uma ferida que o impedia de firmar as duas no chão.
O bem-te-vi pousou em cima da cruz e ficou diante de mim. Enquanto descansava, suspendia a pata machucada, mas não alçava vôo, ficou parado diante de mim. Enxuguei minhas parcas lágrimas e comecei a observá-lo. De súbito, uma angústia se abateu sobre mim. Era vontade de ajudar aquele passarinho, de lhe curar a patinha. Mas eu sabia que se me movesse ele se espantaria e voaria para longe, e a sensação de impotência me fez mais triste.
Foi quando o velho passarinho profetizou a meu respeito:
“Minha pata dói, mas não te conheço. Prefiro a amargura da dor e da falta de liberdade que a ajuda proveniente de estranhos capazes de me matar.
Entre nós há um abismo insuperável, por onde a comunicação não se dá. Sei que sofro e que preciso de ajuda, mas é inútil qualquer tentativa de aproximação. Nossas espécies são diferentes, somos seres diferentes e jamais nos entenderemos.
Estava escrito que entre nós seria assim, portanto, não se aflija comigo. Eu morrerei seguindo meu curso natural.
Mas assim não deveria ser entre vocês, humanos, irmãos de mesma língua e afeto. Entre vocês a comunicação também é difícil, e alguns se dão ao luxo de morrer sem amar e se deixar amar. Entre você e eu há um abismo, mas entre você e seu próximo deveria haver uma ponte mágica, não a destrua.
Às vezes se tenta, mas não se encontra formas de romper a barreira com o próximo, ele está fechado e não ouvirá. Então não há diálogo e tudo se rompe em profundas amarguras. Mas saiba que os outros também tentarão e você também frustrará tentativas de amor.”
E o velho passarinho voou. Quando voltei a mim, senti que era hora de ir embora. O tempo urge e há muito que ser feito antes do final.

Rafael Guerreiro

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

DO VELHO OURIVES ou (RECORDAÇÕES DO INFINITO)


Eis que mãos habilidosas trabalham. Não perturbem a poíesis em processo.
Em seu estúdio, o ourives trata o metal bruto e o transforma. O jovem casal segue ansioso do lado de fora. Enquanto isso, a fina ferramenta do artesão vai grafando no metal da aliança os anseios mais desprendidos.
Nos sulcos feitos no metal ficam letras, nomes e datas. Mais que isso, como tatuagem na pele, o metal se torna único porque sonhos singelos assim o querem ver. E o velho ourives trabalha.
Com cuidado o nome dele é feito no metal dela e o nome dela é feito no metal dele. A data importante do início de tudo é posta cuidadosamente após o nome. Tudo foi consumado e a aliança se impregnou de história.
O experiente ourives termina cuidadosamente o polimento e o trabalho chega ao fim. Então, chama seu ajudante e diz:
- Está feito. Onde está o casal?
- Não há nenhum casal aqui, é muito cedo, ainda estou varrendo a joalheria e abrirei as portas em dez minutos.
- Então ninguém me aguarda?
- Não creio.
E o velho ourives logo entendeu. Pegou as alianças, trancou seu estúdio, despediu-se e voltou para casa.
Quando o avistou, sua mulher logo estranhou.
- Não deverias trabalhar hoje?
- Não. O que devo é entregar-te este presente.
- Novas? Ficaram lindas. E como brilham!
- Têm o mesmo brilho de cinco décadas atrás. Vês a data?
- Sim, é verdade. Nada mudou. Continuas o mesmo broto de antes.
- Ah! Obrigado! Mas sei que já não dou mais pra isso.
- Estás errado, pois conquistaste a mim a cada dia, como um eterno namorado.
- Então, és feliz?
- Sim, muito! Sabes disso.
-Pois fizeste feliz também a mim. É como se o tempo não tivesse passado. Lembras de quando...
- Sim, é hoje...

Rafael Guerreiro

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

COROLÁRIOS


De tudo, o que permanece é o amor. Não há meios de que outras coisas ocupem o lugar deste sentimento. As memórias são cada vez mais ampliadas, enriquecidas pelas experiências de carinho e entrega. Nas minhas memórias, o vento teima em soprar forte dando movimento e energia ao meu presente. E digo que sou rico, na verdade muito rico, pois me sustento em ombros de gigantes, experiências gigantescas que moldam minha vida a cada instante.
E do presente que há pouco dei ao meu amor, extraio sorrisos que só fazem fortalecer os meus gigantes. Sou feliz!
Meus momentos alegres ao lado do meu amor são grafados em sulcos vivos e profundos, como tatuagem em minha pele. E não se apagarão nunca, mas antes tranformam-se numa tenaz impossível de se desfazer. Cada instante, cada segundo composto de olhares brilhantes e pensamentos profundos causam em mim a delicada sensação de negar todas as teorias, todos os conhecimentos provenientes das letras, pois agora só me resta a vontade de amar e mudar tudo ao meu redor.
Dou-te um beijo e sinto seus lábios quentes, concretos, e me perco no calor doce do encontro das salivas. Não quero outra coisa, não desejo o frissom das teorias nem dos argumentos complexos. Insisto nos momentos simples e no aconchego trazido por esta escassa sensação de completude.

Rafael Guerreiro

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

INTERLÚDIO

Resolvi fumar encostado no muro. Eu fumava introspectivo, pensativo. Não havia ninguém por perto, exceto os carros. De repente, um homem descia a rua em sua bicicleta. Não me viu. Quando pude ouvi-lo percebi que ele imitava uma garotinha. Não entendi por que falava sozinho. Falava com voz fina, chata e enjoativa. Parecia que o homem brigava com a garotinha, porque ele fazia duas vozes estridentes, de certo uma para ele e outra para ela, ou as duas para elas, quem sabe? E, perdido em seus devaneios, passou rápido por um buraco na rua, quase caiu da bicicleta e soltou um grito duvidoso. Impossível não ter sido engraçado! Ri da cena...ri muito mesmo, sem entender!
O homem passou, foi embora discutindo com sua imaginação.
Parecia que discutiam em tons acalorados, e ele se defendia ironizando o que a garotinha falava.
De tudo, o mais engraçado foi ouvir ele dizer, com uma convicção enfurecida: "M-E-N-T-I-R-O-S-A!!!"

Rafael Guerreiro

terça-feira, 18 de setembro de 2007

ASPECTOS DO DIZÍVEL

Todos se ajuntam para formar a eclésia. Os cânticos transmitem paz, ressoam pelos ouvidos em auspiciosos tons metafísicos, parecem unir os desejos numa expressão do mundo de lá. Todos juntos, o ambiente é então flamado em suaves odores perfumados de incenso queimado aos poucos, em pequenas e delicadas brasas.
O silêncio reflete a comunhão com o mundo de lá. Uníssonos, os fiéis entram em suas mais íntimas reflexões. A fumaça branca, perfumada e leve sobe aos céus e se dissipa, leva consigo as preces e os sofrimentos de todos, embalados em serenos passos de dança. O incenso sobe, mas antes dança numa sintonia doce e enigmática.
Expressões, visões, revelações, sofrimentos do povo simples, alegrias sinceras de corações humildes, olhos atentos e corações batendo por sentimentos nobres, tudo se comunica e se eleva aos céus pelos trilhos do místico incenso branco e perfumado.
O mundo de lá parece nos chamar, quer dizer algo. Parece que alguém vela por todos. Parece, por sensações de fé e paz, que tudo se encerra no amor e na crença.


Rafael Guerreiro

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

OS NÔMADES DE MINHA CASA

Por estes dias o vento está forte. Parece que algo está agitado, quem sabe seja o espírito, quem sabe o corpo. Não há meios de se saber isso, apenas sei que minha memória também se agita. Trago à tona lembranças muito especiais, que necessitam serem vasculhadas. Quanto mais se aprofunda, minha memória se agita em infinitos turbilhões de sensações e sentimentos escondidos.
Pela janela do quarto observo as árvores e por elas enxergo o movimento do vento. Venta forte, parece que algo quer se comunicar, ser solidário. O vento é forte e sem norte. Deixo muitas lembranças à deriva, remexidas a esmo por mim. Lembro-me, então, do primeiro encontro. Lembras também? Lembro-me das sensações e da expectativa. Lembro-me de como fora belo o primeiro beijo e os outros que até hoje vêm.
São lembranças ciganas, trazidas de tempos em tempos pelos ventos memoriais. Às vezes param e estabelecem morada, às vezes querem trocar presentes e depois apenas seguir viagem. Não têm rumo, apenas existem e buscam um lar, umas mais próximas, outras mais distantes, mas todas aparecem de tempos em tempos.
Venta forte em meu espírito. A sensação é de vida e movimento, mas as lembranças apresentam-se como brisas suaves da praia de Itapuã. Quando retornam de suas viagens quero conhecê-las de novo, mais aprofundadamente, por outros ângulos. Troco presentes e experiências, aprendo seu idioma estrangeiro e a cultura que trazem consigo.
Quando do encontro delas comigo, trago sempre muitos interesses e não me abstenho de um bom café cigano. São por demais desconfiadas, se não tratá-las com o devido respeito passam despercebidas e o mundo torna-se cinza.
Às vezes, quando me sinto sozinho, tenho a sensação de que alguém está a espreita e que me observa com olhos de quem me conhece. São os ciganos de minha memória e querem me visitar. Quando estão por perto o vento se agita e sei que algo virá à tona.

Rafael Guerreiro

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

AQUARELA


Tudo que tenho são expressões do meu amor. E como tudo se transforma em entusiasmo! Sim, diante desse sentimento, segurança e complexidade regem o tom de minha idiossincrasia. Não há formas exatas, tudo é etéreo, tudo é espírito. Por de trás das aparências, incenso e metafísica. Por de trás dos corpos quentes e molhados, o movimento e a dança. Adoro acreditar que o amor é movimento, como a fumaça do incenso que brota branca, breve em brincos brilhantes e delicados. O incenso se eleva perfumado e alcança os céus. Eleva ao mais alto o desejo mais sincero. Leva consigo as aspirações mais abstratas e os sonhos mais íntimos.
Parece que as sensações se comunicam com o mundo de lá em leves e tênues oferendas dadas pelo homem aos deuses. O amor causa coisas como essas, é tão grande que não se contém, faz com que precisemos nos comunicar, dizer para o mundo de lá que as coisas por aqui são lindas e que se movimentam.
Então, acendo uma vela e faço a prece. O fogo fascina e o incenso eleva o fascínio, o comunica. O espírito se acalma, sente-se em harmonia. Em movimento, o amor, por de trás de todos os atos, formula toques, gestos e carícias azuis e róseas que culminam em contrações e palavras brancas, inexoravelmente puras. Cada gesto com sua cor sincera junta-se a outro e outro e mais outro formando um movimento único, branco e brilhante, apenas visível no encontro mágico dos corpos feitos um para o outro.

Rafael Guerreiro

sábado, 25 de agosto de 2007

PAIXÃO, FUMAÇA E PERPLEXIDADE


Ventos avermelhados tomaram meu corpo. Arrastaram-me pelos caminhos da noite. Conduziram-me por trópicos e hemisférios psíquicos nunca antes desbravados. O sol havia se apagado e a lua negra tornava os ares espessos.
Um espectro noturno caminhava junto de mim, possuía a forma de uma coruja e soprava um sopro quente e sensual. Dúvidas brotavam-me múltiplas como um leque e transmutavam-se num verdadeiro caleidoscópio de desejos e sensualidade.
A paixão e o desejo torturavam-me e as idéias, jaziam todas perplexas. Estranhamento, dor e sedução: maldita combinação estridente.
Então, vindo pela esquerda, o espectro transmutou-se em linda forma feminina. Uma sádica serpente de olhos inertes, seguros de si, cobria suas intimidades. Falou-me com voz doce:
- Sou aquilo que você sente. Sou a paixão e o mistério, sou o desejo e o tormento. (espectro)
_Qual seu nome? (eu)
- Sou Lilith, e carrego em mim a lua oculta em todos os mortais (Lilith).
- Este desejo me tortura e a paixão, cega-me os olhos. Você é falsa e perigosa. (eu)
- Mas nem por isso deixo de ser real. (Lilith)
- Não quero esta paixão, estou sufocado. Resta-me algo?(eu)
_Não sei. Tem um cigarro? (Lilith)
- Sim, tenho. (eu)
- Pois acenda-o e fume. Fume como nunca antes fumou. E quando liberar seus tragos de vã prazer, lembre-se de admirar a fumaça. Veja como ela sobe e desaparece dançando bem diante dos seus olhos. Não te resta nada mais que isso. (Lilith)
(baforadas de fumaça...)
- Não é possível, então, que minha paixão encontre seu lar? (eu)
- Não. Mas, se conseguir, pode tentar deixá-la escapar, como deixou escapar a fumaça de seus pulmões. Se tentasse prendê-la ficaria asfixiado. Ela não te pertence, é efêmera e necessita de liberdade. Assim são os amores não correspondidos, não pertencem aos que os amam e se vão dançando, para desespero dos apaixonados. Enquanto isso, divirto-me em meio a humanidade, pregando minhas peças irônicas... (Lilith)



Rafael Guerreiro

sábado, 18 de agosto de 2007

ANTOLOGIA DO SILÊNCIO

Ele parecia sempre sério. Rosto sisudo, poucas eram as oportunidades realmente sinceras para dar um sorriso autêntico. Não se tratava de uma incompreensão do mundo, não era alhures rebeldia, era apenas perplexidade. A realidade para ele firmava-se em pilares paradoxais. Ora a religião fazia sentido, ora o nihilismo antiteísta projetava-se como a mais sincera demonstração de um sentimento pessoal e genuíno.
Ele pensava na crise dos seus paradigmas, na crise dos padrões que o levavam à sua identidade e percebia que o problema não era esse. A grande esfínge devoradora de sua vida estava na busca pelo seu próprio espaço. Já havia a muito cansado da convivência com os pais. Ele os amava mais que a qualquer outra coisa na vida. Era compreensivo nesse ponto, sabia que eles consistiam-se na sua maior herança.
Não era rebeldia, era apenas o sentimento de perceber-se incapaz de promover a completude de sua vida nas condições em que estava submetido na casa de seus pais.
O velho tinha suas neuroses, sua mãe os seus medos. Tudo era compreensível, mas há tempos havia a necessidade de que tudo aquilo se transformasse.
Essa consciência dificultava as coisas, tornava tudo mais profundo. Ele era filho único, suas responsabilidades firmavam-se sempre com maior veemência, e ele sabia disso e se entristecia.

***

Na universidade, seus estudos lhe tomavam um tempo considerável. Por lá tinha alguns amigos, algumas garotas também passaram, mas só passaram. O seu coração não encontrava morada certa, não havia ainda experimentado a sensação de um grande amor.Às vezes, o que lhe sobrevinha era a dúvida de se estar penetrando deveras num mundo muito pessoal, inalcançável para os demais. Tinha medo dessa perspectiva. Ele queria ser artista, ele era um artista. Ele escrevia.
Suas poesias e seus contos eram seus filhos adotivos, os amava muito. Mas a sensação de vazio o perseguia como sua sombra, sempre lhe faltava algo e isso o cansava.
Na religião, esse cansaço tendia a converte-se em entusiasmo. Não havia nele vocação para a descrença, mas nem sempre sabia em que acreditar. O mundo psíquico mesclava-se com o mundo do espírito. Ele via na fumaça e sua dança o símbolo capaz de unir o visível e o invisível, por isso se encantava com o incenso e o seu movimento. A fumaça dançava para ele com passos delicados, sutis até que sumia, transmutava-se em eterna expressão metafísica. Ali, no seu mais íntimo sentimento tudo se renovava, mas a profundidade tornava opaca a sensação de paz e a razão, sempre hodierna, voltava a tona e preenchia seu mundo com uma estranha premonição de que tudo permanecera inexoravelmente estático. Quaisquer discussões teológicas eram agora nada saudáveis.
A fé, grande legado de seus pais, agora precisava ser lapidada, podada para que produzisse frutos. Era um jogo entre sua razão e seu legado. Nada era como antes, mas ele não saberia dizer como as coisas deveriam ser.
Perplexidade. Sentimento de intolerância. Negação.Picos de alegria bruxuleante e tristeza miserável.
Os símbolos, os sentidos dados ao mundo por ele precisavam ser transformados, ele buscava incessantemente essa transmutação. Enquanto isso o mundo caminhava, o tempo, inexorável companheiro, apressava-o e o comprimia, dava-lhe um medo e uma perspectiva.

***

No bar à noite com os amigos sempre se alegrava e se entristecia. No bar tudo era movimento, dança. Acendeu um cigarro, olhou atentamente para a fumaça e a admirou.
As pessoas ao seu redor pareciam intrinsecamente complexas, mas pareciam não saber disso. Todos riam, comemoravam ele não sabia o quê. Debaixo da noite as pessoas ali vivendo alguma coisa como vidas, riam alguma coisa como sorrisos, dançavam alguma coisa como música e nutriam alguma coisa como felicidade. Ele realmente não buscava a felicidade naquele lugar, apenas tentava encontrar alguma conexão entre sua vida e as demais vidas ali no seu presente. Ele olhava para o público sorrindo no bar e olhava para o dono do bar que não sorria. Ele olhava os bêbados, os fumantes e toda sorte de ébrios, todos buscavam alguma coisa como felicidade. Tudo girava em torno da felicidade, e viu-se dependente dessa perspectiva. Admirou-se e frustrou-se. O cigarro queimara-se por completo, a fumaça o abandonara novamente.
Todos ali tinham sua própria filosofia, suas visões idiossincráticas. Em meio a elas o bar reinava, era ele o substrato, pano de fundo que gerava todos os acontecimentos e todos os enganos.
Ele se sentava com seus amigos e bebia e fumava e escutava e falava...Era esse o movimento da alma _ mas que alma meu Deus?
Ele talvez diria que essa alma fosse uma tentativa, pois, tinha vontade, mas a vontade não era entusiasmo.
Ele tinha consciência de tudo e de todos e por isso não tinha nada. Tudo parecia efêmero e ao mesmo tempo essencial. Não saberia nesse momento dizer se o problema era dele ou dos outros, mas havia um problema. Tudo era real demais e tudo era nada demais!
Ele ascendeu outro cigarro e vislumbrou a fumaça e o seu movimento.
Olhos atentos no balanço metafísico do invisível.
Prendia-se no mistério de suas visões.
Nada sobrava dessa fumaça.
Nada restava da dança.
Desintegrava-se.
Na música.
No nada.
Na vida.
Em si.
Só.
Rafael Guerreiro

O DESEJO DO MENDIGO

Não havia lugar para ele. Seu refúgio foi se instalar nos espaços existentes por debaixo da concha-acústica da praça do centro da cidade. Cobria com trapos o corpo cheio de sulcos e feridas e usava pedaços de papelão como cama. O frio e a rejeição seguiam-lhe. Contra o frio usava os goles de pinga ministrados homeopaticamente; contra a rejeição usava suas ânsias por dignidade.
Neste dia comera apenas as sobras das pipocas murchas que os pipoqueiros do centro da cidade não venderam. Não tomava banho havia dias, passava frio e fome. Olhos atentos nas pessoas que passavam. O abraço do pai em seu filho, o beijo dos namorados sentados nos bancos, o sorriso da criança que corria atrás dos pombos...Ardia-lhe o desejo de amar e de ser amado, mas o chão era duro e a noite fria. No rosto sisudo as marcas do sol e de uma vida sem muitos sorrisos.
Nada, nenhuma perspectiva de transformação sondava sua realidade. Tudo era demasiadamente caótico e a consciência de si diante desse caos trazia-lhe apenas mais sofrimento. Ele olhava ao seu redor e via vários caminhantes que como ele bebiam e sofriam. Como todos naquela situação, enrolava-se debaixo de seu cobertor e dormia na tentativa de encontrar o mais profundo esquecimento. A realidade, entretanto, acordava-o com leves toques de ironia e sarcasmo.
Entre eles todos se olhavam sorrateiramente com olhos vacilantes. Durante o silêncio da madrugada ouviam-se alguns sussurros, tosses, gemidos de dores e delírios daqueles que dormiam pelos bancos e pelos espaços encobertos, tentando ocultar as marcas de sua humilhação.
Acordava algumas vezes durante a madrugada, conferia suas coisas e procurava algo para comer. Quando não havia nada e a dor da solidão causava-lhe uma angústia bruta e doída, quando o frio era muito e não havia mais bebida nem esperança, seu remédio era caminhar até a imagem branca imponente do Cristo de braços abertos que fica bem diante de onde ele dormia. Gostava daquele momento. Ele não sabia rezar, não sabia como chamar a Deus, mas se sentia acolhido naquele encontro místico entre o homem e a estátua do Sagrado. Não compreendia onde poderia estar Deus, mas sentia que sua existência ganhava sentido naquele encontro transcendental. Naquela noite, em meio às luzes dos postes e ao ruído da corrente elétrica passando pelos fios de eletricidade, ele se sentou nas escadarias da Catedral, chorou e procurou respostas diante do Cristo de braços abertos. Por ele passavam angústia e medo. Sua cabeça transbordava num caleidoscópio de sentimentos e pensamentos contraditórios por onde a embriagues regia o tom da perplexidade.
Não suportava mais a solidão e a indiferença. Ele olhava para o Cristo de braços abertos e sem motivos pediu perdão, meio que por necessidade, meio que por temor. Naquele momento sonhou como uma criança e desejou que no mundo ele tivesse um lugar. Deitou-se e com um sorriso infantil aos poucos adormeceu, embebido em sua alegria miúda. O dia chegava e ele não mais acordou. Morreu dormindo nas escadarias da Catedral. Enterraram-no sem cerimônias. Os demais apossaram-se de seus pertences e logo outro caminhante se instalou onde ele dormia. Enquanto isso, na cidade da Franca continuam os mesmos sussurros, tosses e gemidos de dores por entre as madrugadas. Na cidade da Franca o cotidiano segue seu ritmo enquanto o Cristo de braços abertos acolhe aqueles que poucos enxergam.
Rafael Guerreiro

domingo, 12 de agosto de 2007

O TEMPO PAROU POR VOCÊ

Hoje, resolvi escrever para você. Não sei ao certo os meus motivos. Acho que é o tempo, que por aqui passou a não correr mais. Nas paragens de cá, onde meus sonhos trancam sentimentos em cofres de ouro, o tempo já não anda, acho que desconfio da causa. Lembro-me das antigas histórias dos já esquecidos sábios alquimistas do deserto. Eles buscavam o domínio do tempo; se para eles o tempo parasse, a imortalidade reinaria num eterno invólucro biológico incorruptível. Era o tão desejado elixir da longa vida. Trabalhavam para atingir tal façanha, mas não se saciaram com isso apenas. Sei por seguras fontes que almejavam ainda a Pedra Filosofal, capaz de transformar tudo em ouro. Mas, diante da paixão pelo elixir deixaram todos os outros projeto de lado e, dedicados, lançaram mão unicamente deste mistério.
Ao lembrar de sua saga, eis que surge em mim uma certa pretensão alquímica de ter, quem sabe, mas não por acaso, atingido acidentalmente o tal elixir da longa vida, visto que por aqui o tempo já não anda, é estático e carrega consigo um certo ar de plenitude. Sei que para os velhos alquimistas o elixir nunca foi encontrado, tornando-se fatalmente pedra de tropeço para todos que se enveredaram pelos seus segredos. Sei ainda uma antiga história sobre tal empreendimento, acho que seria de bom grado contá-la para que não duvides de que realmente o encontrei, mas por outros métodos, menos sofisticados. Faço então o relato do fracasso alquímico.
Eis que os antigos alquimistas trabalhavam incessantemente em busca do lendário elixir. Desenhavam em seus grossos grimórios feitos de papiro trançado, complexas fórmulas alquímicas incapazes de serem traduzidas sem profundo conhecimento. Escreviam arduamente com auxílio de suas penas sob a luz de velas de cera amarelada. Em seus laboratórios construíram grandes e complexos destiladores, por onde o suado líquido gotejava em béqueres e erlenmeyers, pipetas e tubos de ensaio. Reuniam-se em secretas vigílias que duravam dias e madrugadas a fio para reportarem seus avanços rumo ao místico elixir. Contudo, ele se ocultava, não se deixava descobrir pelos alquimistas que, entediados, deitavam tudo por terra.
Mas não desistiam, a paixão alquímica os movia e, guiados pela magia do indecifrável, continuavam sua busca épica. Construíram então um enorme caldeirão e nele deitaram as essências de muitos dos nobres sentimentos do homem, extraídos a muito custo em seus potentes destiladores. Mas nem todos os sentimentos puderam ser extraídos com o uso da técnica e da sabedoria. Era claro que algo tornava incompleta a fórmula, mas a crença que depositavam em seu ocultismo cegou-lhes os olhos e, sem cogitar o fracasso, seguiram em sua saga . Então, combinaram tudo seguindo seus mistérios ocultistas. Analisaram constantemente a temperatura ideal e os níveis de acidez, corrigindo, quando era o caso, os excessos da fórmula. Tomaram ainda o devido cuidado de anotarem todas as etapas do caminho em seus papiros molhados com tinta fulgurante. Suas penas trabalharam arduamente na construção teórica da fórmula perfeita.
Então, quando julgaram ter chegado no princípio ativo ideal, reuniram-se numa enorme convenção, dispostos a difundir entre a seleta plêiade de doutos alquimistas o tão idolatrado invento.
Um deles, correndo e vibrante por tamanho entusiasmo, trouxe em um frasco ornado com safiras e esmeraldas uma rara quantidade do caro invento. Olhavam ansiosos para o frasco fechado e para a ampulheta posta ao lado. Acreditavam que quando o frasco fosse aberto, para aqueles eleitos o tempo já não continuaria, e o primeiro vislumbre da eternidade seria naquele singular ambiente demonstrado e recebido pelos ávidos cientistas.
Ao mais velho e sábio de todos foi dada a honra de primeiro abrir o frasco e receber em si as luzes da eternidade prometida. Então, com mãos trêmulas, um sorriso indescritível e cortejado pela ilustre plêiade dos que o assistiam, foi o antigo sábio abrir o frasco. Os mais curiosos se espremeram para verem os frutos do árduo trabalho de toda sua vida.
Mas, pobres e desolados ficaram quando depois de aberto o frasco observaram que na ampulheta a areia avermelhada ainda se movimentava.
Depois de tal frustração, retiraram-se do métier para nunca mais voltarem. Aos grimórios foi dado o fogo e os instrumentos, todos quebrados. Sei que no lugar onde funcionava seu laboratório hoje enlaçaram em pedra uma linda igrejinha. E os alquimistas, partiram para terras longínquas.
Esta é a história do fracasso do elixir da longa vida. E diante disso, tu podes perguntar: como ousas dizer que tu encontraste aquilo que os antigos sábios jamais vislumbraram? Pois respondo tua pergunta: verdadeiramente encontrei, sem engenho e sem fórmulas, posto diante de mim no beijo doce e delicado que recebi de você. Nesse beijo, os astros do universo em rara sintonia cuidaram para que suas órbitas fossem totalmente alinhadas e a lua, que dormia grande e branca no céu, acordou e sorriu um sorriso de mãe. Foi um momento lindo, nosso beijo sincero sendo assistido pelos céus sem fim. As estrelas todas brilharam forte e o tempo, inexorável tempo que nunca pára, hoje parou e admirou o doce encontro do nosso amor.

Rafael Guerreiro