sábado, 25 de agosto de 2007

PAIXÃO, FUMAÇA E PERPLEXIDADE


Ventos avermelhados tomaram meu corpo. Arrastaram-me pelos caminhos da noite. Conduziram-me por trópicos e hemisférios psíquicos nunca antes desbravados. O sol havia se apagado e a lua negra tornava os ares espessos.
Um espectro noturno caminhava junto de mim, possuía a forma de uma coruja e soprava um sopro quente e sensual. Dúvidas brotavam-me múltiplas como um leque e transmutavam-se num verdadeiro caleidoscópio de desejos e sensualidade.
A paixão e o desejo torturavam-me e as idéias, jaziam todas perplexas. Estranhamento, dor e sedução: maldita combinação estridente.
Então, vindo pela esquerda, o espectro transmutou-se em linda forma feminina. Uma sádica serpente de olhos inertes, seguros de si, cobria suas intimidades. Falou-me com voz doce:
- Sou aquilo que você sente. Sou a paixão e o mistério, sou o desejo e o tormento. (espectro)
_Qual seu nome? (eu)
- Sou Lilith, e carrego em mim a lua oculta em todos os mortais (Lilith).
- Este desejo me tortura e a paixão, cega-me os olhos. Você é falsa e perigosa. (eu)
- Mas nem por isso deixo de ser real. (Lilith)
- Não quero esta paixão, estou sufocado. Resta-me algo?(eu)
_Não sei. Tem um cigarro? (Lilith)
- Sim, tenho. (eu)
- Pois acenda-o e fume. Fume como nunca antes fumou. E quando liberar seus tragos de vã prazer, lembre-se de admirar a fumaça. Veja como ela sobe e desaparece dançando bem diante dos seus olhos. Não te resta nada mais que isso. (Lilith)
(baforadas de fumaça...)
- Não é possível, então, que minha paixão encontre seu lar? (eu)
- Não. Mas, se conseguir, pode tentar deixá-la escapar, como deixou escapar a fumaça de seus pulmões. Se tentasse prendê-la ficaria asfixiado. Ela não te pertence, é efêmera e necessita de liberdade. Assim são os amores não correspondidos, não pertencem aos que os amam e se vão dançando, para desespero dos apaixonados. Enquanto isso, divirto-me em meio a humanidade, pregando minhas peças irônicas... (Lilith)



Rafael Guerreiro

sábado, 18 de agosto de 2007

ANTOLOGIA DO SILÊNCIO

Ele parecia sempre sério. Rosto sisudo, poucas eram as oportunidades realmente sinceras para dar um sorriso autêntico. Não se tratava de uma incompreensão do mundo, não era alhures rebeldia, era apenas perplexidade. A realidade para ele firmava-se em pilares paradoxais. Ora a religião fazia sentido, ora o nihilismo antiteísta projetava-se como a mais sincera demonstração de um sentimento pessoal e genuíno.
Ele pensava na crise dos seus paradigmas, na crise dos padrões que o levavam à sua identidade e percebia que o problema não era esse. A grande esfínge devoradora de sua vida estava na busca pelo seu próprio espaço. Já havia a muito cansado da convivência com os pais. Ele os amava mais que a qualquer outra coisa na vida. Era compreensivo nesse ponto, sabia que eles consistiam-se na sua maior herança.
Não era rebeldia, era apenas o sentimento de perceber-se incapaz de promover a completude de sua vida nas condições em que estava submetido na casa de seus pais.
O velho tinha suas neuroses, sua mãe os seus medos. Tudo era compreensível, mas há tempos havia a necessidade de que tudo aquilo se transformasse.
Essa consciência dificultava as coisas, tornava tudo mais profundo. Ele era filho único, suas responsabilidades firmavam-se sempre com maior veemência, e ele sabia disso e se entristecia.

***

Na universidade, seus estudos lhe tomavam um tempo considerável. Por lá tinha alguns amigos, algumas garotas também passaram, mas só passaram. O seu coração não encontrava morada certa, não havia ainda experimentado a sensação de um grande amor.Às vezes, o que lhe sobrevinha era a dúvida de se estar penetrando deveras num mundo muito pessoal, inalcançável para os demais. Tinha medo dessa perspectiva. Ele queria ser artista, ele era um artista. Ele escrevia.
Suas poesias e seus contos eram seus filhos adotivos, os amava muito. Mas a sensação de vazio o perseguia como sua sombra, sempre lhe faltava algo e isso o cansava.
Na religião, esse cansaço tendia a converte-se em entusiasmo. Não havia nele vocação para a descrença, mas nem sempre sabia em que acreditar. O mundo psíquico mesclava-se com o mundo do espírito. Ele via na fumaça e sua dança o símbolo capaz de unir o visível e o invisível, por isso se encantava com o incenso e o seu movimento. A fumaça dançava para ele com passos delicados, sutis até que sumia, transmutava-se em eterna expressão metafísica. Ali, no seu mais íntimo sentimento tudo se renovava, mas a profundidade tornava opaca a sensação de paz e a razão, sempre hodierna, voltava a tona e preenchia seu mundo com uma estranha premonição de que tudo permanecera inexoravelmente estático. Quaisquer discussões teológicas eram agora nada saudáveis.
A fé, grande legado de seus pais, agora precisava ser lapidada, podada para que produzisse frutos. Era um jogo entre sua razão e seu legado. Nada era como antes, mas ele não saberia dizer como as coisas deveriam ser.
Perplexidade. Sentimento de intolerância. Negação.Picos de alegria bruxuleante e tristeza miserável.
Os símbolos, os sentidos dados ao mundo por ele precisavam ser transformados, ele buscava incessantemente essa transmutação. Enquanto isso o mundo caminhava, o tempo, inexorável companheiro, apressava-o e o comprimia, dava-lhe um medo e uma perspectiva.

***

No bar à noite com os amigos sempre se alegrava e se entristecia. No bar tudo era movimento, dança. Acendeu um cigarro, olhou atentamente para a fumaça e a admirou.
As pessoas ao seu redor pareciam intrinsecamente complexas, mas pareciam não saber disso. Todos riam, comemoravam ele não sabia o quê. Debaixo da noite as pessoas ali vivendo alguma coisa como vidas, riam alguma coisa como sorrisos, dançavam alguma coisa como música e nutriam alguma coisa como felicidade. Ele realmente não buscava a felicidade naquele lugar, apenas tentava encontrar alguma conexão entre sua vida e as demais vidas ali no seu presente. Ele olhava para o público sorrindo no bar e olhava para o dono do bar que não sorria. Ele olhava os bêbados, os fumantes e toda sorte de ébrios, todos buscavam alguma coisa como felicidade. Tudo girava em torno da felicidade, e viu-se dependente dessa perspectiva. Admirou-se e frustrou-se. O cigarro queimara-se por completo, a fumaça o abandonara novamente.
Todos ali tinham sua própria filosofia, suas visões idiossincráticas. Em meio a elas o bar reinava, era ele o substrato, pano de fundo que gerava todos os acontecimentos e todos os enganos.
Ele se sentava com seus amigos e bebia e fumava e escutava e falava...Era esse o movimento da alma _ mas que alma meu Deus?
Ele talvez diria que essa alma fosse uma tentativa, pois, tinha vontade, mas a vontade não era entusiasmo.
Ele tinha consciência de tudo e de todos e por isso não tinha nada. Tudo parecia efêmero e ao mesmo tempo essencial. Não saberia nesse momento dizer se o problema era dele ou dos outros, mas havia um problema. Tudo era real demais e tudo era nada demais!
Ele ascendeu outro cigarro e vislumbrou a fumaça e o seu movimento.
Olhos atentos no balanço metafísico do invisível.
Prendia-se no mistério de suas visões.
Nada sobrava dessa fumaça.
Nada restava da dança.
Desintegrava-se.
Na música.
No nada.
Na vida.
Em si.
Só.
Rafael Guerreiro

O DESEJO DO MENDIGO

Não havia lugar para ele. Seu refúgio foi se instalar nos espaços existentes por debaixo da concha-acústica da praça do centro da cidade. Cobria com trapos o corpo cheio de sulcos e feridas e usava pedaços de papelão como cama. O frio e a rejeição seguiam-lhe. Contra o frio usava os goles de pinga ministrados homeopaticamente; contra a rejeição usava suas ânsias por dignidade.
Neste dia comera apenas as sobras das pipocas murchas que os pipoqueiros do centro da cidade não venderam. Não tomava banho havia dias, passava frio e fome. Olhos atentos nas pessoas que passavam. O abraço do pai em seu filho, o beijo dos namorados sentados nos bancos, o sorriso da criança que corria atrás dos pombos...Ardia-lhe o desejo de amar e de ser amado, mas o chão era duro e a noite fria. No rosto sisudo as marcas do sol e de uma vida sem muitos sorrisos.
Nada, nenhuma perspectiva de transformação sondava sua realidade. Tudo era demasiadamente caótico e a consciência de si diante desse caos trazia-lhe apenas mais sofrimento. Ele olhava ao seu redor e via vários caminhantes que como ele bebiam e sofriam. Como todos naquela situação, enrolava-se debaixo de seu cobertor e dormia na tentativa de encontrar o mais profundo esquecimento. A realidade, entretanto, acordava-o com leves toques de ironia e sarcasmo.
Entre eles todos se olhavam sorrateiramente com olhos vacilantes. Durante o silêncio da madrugada ouviam-se alguns sussurros, tosses, gemidos de dores e delírios daqueles que dormiam pelos bancos e pelos espaços encobertos, tentando ocultar as marcas de sua humilhação.
Acordava algumas vezes durante a madrugada, conferia suas coisas e procurava algo para comer. Quando não havia nada e a dor da solidão causava-lhe uma angústia bruta e doída, quando o frio era muito e não havia mais bebida nem esperança, seu remédio era caminhar até a imagem branca imponente do Cristo de braços abertos que fica bem diante de onde ele dormia. Gostava daquele momento. Ele não sabia rezar, não sabia como chamar a Deus, mas se sentia acolhido naquele encontro místico entre o homem e a estátua do Sagrado. Não compreendia onde poderia estar Deus, mas sentia que sua existência ganhava sentido naquele encontro transcendental. Naquela noite, em meio às luzes dos postes e ao ruído da corrente elétrica passando pelos fios de eletricidade, ele se sentou nas escadarias da Catedral, chorou e procurou respostas diante do Cristo de braços abertos. Por ele passavam angústia e medo. Sua cabeça transbordava num caleidoscópio de sentimentos e pensamentos contraditórios por onde a embriagues regia o tom da perplexidade.
Não suportava mais a solidão e a indiferença. Ele olhava para o Cristo de braços abertos e sem motivos pediu perdão, meio que por necessidade, meio que por temor. Naquele momento sonhou como uma criança e desejou que no mundo ele tivesse um lugar. Deitou-se e com um sorriso infantil aos poucos adormeceu, embebido em sua alegria miúda. O dia chegava e ele não mais acordou. Morreu dormindo nas escadarias da Catedral. Enterraram-no sem cerimônias. Os demais apossaram-se de seus pertences e logo outro caminhante se instalou onde ele dormia. Enquanto isso, na cidade da Franca continuam os mesmos sussurros, tosses e gemidos de dores por entre as madrugadas. Na cidade da Franca o cotidiano segue seu ritmo enquanto o Cristo de braços abertos acolhe aqueles que poucos enxergam.
Rafael Guerreiro

domingo, 12 de agosto de 2007

O TEMPO PAROU POR VOCÊ

Hoje, resolvi escrever para você. Não sei ao certo os meus motivos. Acho que é o tempo, que por aqui passou a não correr mais. Nas paragens de cá, onde meus sonhos trancam sentimentos em cofres de ouro, o tempo já não anda, acho que desconfio da causa. Lembro-me das antigas histórias dos já esquecidos sábios alquimistas do deserto. Eles buscavam o domínio do tempo; se para eles o tempo parasse, a imortalidade reinaria num eterno invólucro biológico incorruptível. Era o tão desejado elixir da longa vida. Trabalhavam para atingir tal façanha, mas não se saciaram com isso apenas. Sei por seguras fontes que almejavam ainda a Pedra Filosofal, capaz de transformar tudo em ouro. Mas, diante da paixão pelo elixir deixaram todos os outros projeto de lado e, dedicados, lançaram mão unicamente deste mistério.
Ao lembrar de sua saga, eis que surge em mim uma certa pretensão alquímica de ter, quem sabe, mas não por acaso, atingido acidentalmente o tal elixir da longa vida, visto que por aqui o tempo já não anda, é estático e carrega consigo um certo ar de plenitude. Sei que para os velhos alquimistas o elixir nunca foi encontrado, tornando-se fatalmente pedra de tropeço para todos que se enveredaram pelos seus segredos. Sei ainda uma antiga história sobre tal empreendimento, acho que seria de bom grado contá-la para que não duvides de que realmente o encontrei, mas por outros métodos, menos sofisticados. Faço então o relato do fracasso alquímico.
Eis que os antigos alquimistas trabalhavam incessantemente em busca do lendário elixir. Desenhavam em seus grossos grimórios feitos de papiro trançado, complexas fórmulas alquímicas incapazes de serem traduzidas sem profundo conhecimento. Escreviam arduamente com auxílio de suas penas sob a luz de velas de cera amarelada. Em seus laboratórios construíram grandes e complexos destiladores, por onde o suado líquido gotejava em béqueres e erlenmeyers, pipetas e tubos de ensaio. Reuniam-se em secretas vigílias que duravam dias e madrugadas a fio para reportarem seus avanços rumo ao místico elixir. Contudo, ele se ocultava, não se deixava descobrir pelos alquimistas que, entediados, deitavam tudo por terra.
Mas não desistiam, a paixão alquímica os movia e, guiados pela magia do indecifrável, continuavam sua busca épica. Construíram então um enorme caldeirão e nele deitaram as essências de muitos dos nobres sentimentos do homem, extraídos a muito custo em seus potentes destiladores. Mas nem todos os sentimentos puderam ser extraídos com o uso da técnica e da sabedoria. Era claro que algo tornava incompleta a fórmula, mas a crença que depositavam em seu ocultismo cegou-lhes os olhos e, sem cogitar o fracasso, seguiram em sua saga . Então, combinaram tudo seguindo seus mistérios ocultistas. Analisaram constantemente a temperatura ideal e os níveis de acidez, corrigindo, quando era o caso, os excessos da fórmula. Tomaram ainda o devido cuidado de anotarem todas as etapas do caminho em seus papiros molhados com tinta fulgurante. Suas penas trabalharam arduamente na construção teórica da fórmula perfeita.
Então, quando julgaram ter chegado no princípio ativo ideal, reuniram-se numa enorme convenção, dispostos a difundir entre a seleta plêiade de doutos alquimistas o tão idolatrado invento.
Um deles, correndo e vibrante por tamanho entusiasmo, trouxe em um frasco ornado com safiras e esmeraldas uma rara quantidade do caro invento. Olhavam ansiosos para o frasco fechado e para a ampulheta posta ao lado. Acreditavam que quando o frasco fosse aberto, para aqueles eleitos o tempo já não continuaria, e o primeiro vislumbre da eternidade seria naquele singular ambiente demonstrado e recebido pelos ávidos cientistas.
Ao mais velho e sábio de todos foi dada a honra de primeiro abrir o frasco e receber em si as luzes da eternidade prometida. Então, com mãos trêmulas, um sorriso indescritível e cortejado pela ilustre plêiade dos que o assistiam, foi o antigo sábio abrir o frasco. Os mais curiosos se espremeram para verem os frutos do árduo trabalho de toda sua vida.
Mas, pobres e desolados ficaram quando depois de aberto o frasco observaram que na ampulheta a areia avermelhada ainda se movimentava.
Depois de tal frustração, retiraram-se do métier para nunca mais voltarem. Aos grimórios foi dado o fogo e os instrumentos, todos quebrados. Sei que no lugar onde funcionava seu laboratório hoje enlaçaram em pedra uma linda igrejinha. E os alquimistas, partiram para terras longínquas.
Esta é a história do fracasso do elixir da longa vida. E diante disso, tu podes perguntar: como ousas dizer que tu encontraste aquilo que os antigos sábios jamais vislumbraram? Pois respondo tua pergunta: verdadeiramente encontrei, sem engenho e sem fórmulas, posto diante de mim no beijo doce e delicado que recebi de você. Nesse beijo, os astros do universo em rara sintonia cuidaram para que suas órbitas fossem totalmente alinhadas e a lua, que dormia grande e branca no céu, acordou e sorriu um sorriso de mãe. Foi um momento lindo, nosso beijo sincero sendo assistido pelos céus sem fim. As estrelas todas brilharam forte e o tempo, inexorável tempo que nunca pára, hoje parou e admirou o doce encontro do nosso amor.

Rafael Guerreiro