quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

ORGULHO FERIDO

Por estes dias que passaram, um desconhecido me insultou. Impossível saber quem foi, pois em nenhum momento esta pessoa disse quem era e quais os seus motivos. Tudo que sei é que fui alvo de insultos por um desafeto anônimo hipotético.
Situação curiosa essa, porque nunca achei que tais coisas aconteceriam comigo de forma tão inesperada.
O fato é que o incidente acabou por se transformar num curioso exercício. Passei então a moldar um rosto para o tal hipotético “boca-suja”. Sondei a dispensa de minha memória em busca de alguma lembrança do passado que pudesse justificar a atitude desse alguém, mas nada encontrei que pudesse fornecer um ponto de partida, quiçá uma suspeita.
Inconformado, passei a analisar o presente e tive a mesma sensação de que ninguém traria consigo algo que o motivasse a desferir grosserias contra mim.
E o rosto não se formava. O insulto abstrato se mantinha amorfo em minhas lucubrações, sem nenhum autor palpável, sólido. Apenas ficava lá, rindo de mim.
Na verdade, com o tempo pude perceber que meu inconformismo provinha de minha vaidade, de minha não aceitação de que coisas como essa pudessem ocorrer. Foi quando descobri um molde para o tal fulano “boca-suja”. Pintei-lhe com tintas de vaidade e moldei seu rosto com matéria ensandecida de orgulho. Ficou horrível! Ótimo pra dar boas pancadas!
Foi o que fiz, nessa aberração que criei, descarreguei toda incompreensão que me restava. Bati tanto que lhe abri muitas feridas. Deixei aquela coisa horrível tão ferida que mais parecia matéria inerte, morta. Parei apenas quando a coisa já não se movia, mas sei que não o matei, porque ninguém morre de orgulho ferido.


Rafael Guerreiro

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

O SUMIÇO DO MENTIROSO

Era um senhor astuto, de frases e olhares ardilosos. Trazia consigo ostentações imaginárias e descrevia sempre em suas conversas situações inusitadas. Acostumou a mentir desde que se entendia por gente. Tal prática foi tão exercitada que passou a esquecer quem realmente era.
Mas por de trás das aparências, mentiras eram sutilmente aplicadas, introduzidas no cotidiano como um vírus inoculado.
E o velho mentia, sustentou mentiras por toda uma vida. E mentia e mentia e mentia.... Passou a vida mentindo, descaradamente. É bem verdade que muitas delas nunca serviram para nada, eram apenas reflexos de um espírito inconformado consigo mesmo. Na verdade, representavam farpas trocadas pelo divórcio entre o próprio sujeito e sua idiossincrasia.
Era fato que mais cedo ou mais tarde as tais mentiras se deitariam por terra.
Mas o que assustava era a necessidade que o tal sujeito tinha de mentir. O homem incorporou tanto a mentira que mais lhe parecia uma droga. Usava-se dela como um viciado que passa a vida beirando as bocas de fumo. E por de trás das palavras inverossímeis, o mau cheiro lançava sortilégios que por tanto tempo ludibriavam os inocentes que caíam neles.
E desse jogo, saíram toda sorte de imaginações. O mentiroso mais parecia um artista, falava de como se tornou maçom, mas nunca havia recebido sequer um convite. Dizia com veemência ser profundo conhecedor das leis, dizia até mesmo ser bacharel em Direito, mas na verdade não havia terminado nem o segundo grau. E ainda, por suas mentiras, já viajou o mundo todo, conheceu os Estados Unidos e a França, a Bolívia e a Colômbia. O Brasil, então, conhecia do Oiapoque ao Chuí.
Em suas tramas, conhecia políticos influentes. Todos se admiraram quando disse que fora amigo de Ulisses Guimarães, o político das “diretas já”, e dizia que pouco tempo antes de sua morte havia recebido uma carta do amigo ilustre.
E adorava os detalhes, contava com inconfundível entusiasmo histórias de quando percorreu as matas de minas gerais, onde viu lobos-guarás, onças-pintadas e tantas outras coisas que não caberiam nem mesmo num desenho animado.
Na escola então, nunca havia tirado nota menor que o próprio dez, e acrescentava o gravame de estudar sempre em cima do lombo do cavalo que o conduzia, pois a dificuldade era muita. Detalhe: a nota dez sempre vinha acompanhada de um modesto “honra ao mérito”.
Claro que com tanta criatividade seu altruísmo não poderia ficar esquecido. Às vezes, quando comprava um peru de natal ou alguma outra iguaria mais cara, adorava contar em casa que o havia ganho como recompensa por ter ajudado uma suposta pobre senhora que passava por problemas com seu carro. Era mesmo um “gentleman”!
E assim foi todos os dias, embaralhados, permeados por mentirinhas, por vezes inocentes, por vezes dolorosas, mas nunca mantidas por muito tempo. O fato é que a verdade sobre sua vida aos poucos foi sumindo, nem mesmo ele era capaz de se lembrar, ou talvez não queria.
A sensação que anestesiava quem o escutava era a dó, deixavam passar as mentirinhas para não maltratarem aquela alma pueril. Contudo, era bem verdade que o pavio fora se consumindo ao longo do tempo junto com a paciência e, aos poucos, o exílio social passou a ser aplicado como corretivo. A descrença passou a ser latente entre os ouvintes.
Com ironia e até mesmo com adequada dose de risadas, passaram a lembrar mais das mentiras contadas do que do próprio mentiroso. Foi quando o ostracismo o infectou como que uma doença incurável e degenerativa. Quando ele aparecia, enxergavam apenas um emaranhado de palavras sem valor, guardadas por uma existência sem crédito.
Inconformado, sentiu que precisava mentir mais e mais para se sustentar. Era preciso fazer os outros acreditarem que ele era influente, que conhecia os políticos poderosos, o mundo com suas maravilhas e que viveu uma vida de aventuras. Mas quando abria a boca, os que ouviam deitavam tudo por terra com um simples olhar de descaso.
Mas o velho mentiroso ainda tentava, extraía de sua imaginação resquícios de criatividade, juntava os restos que lhe sobravam e tecia mosaicos imaginários onde misturava verdade e mentira. Era o desespero que lhe acometia. Era a existência que lhe escorria pelas mãos. Não poderia viver agora sem as suas criações. Foram contadas por tanto tempo que agora negar-lhes era o mesmo que ter um membro amputado.
Não! Era preciso mantê-las, porque para ele eram a mais pura verdade. Em meio a suores desesperados tentava se lembrar do que havia sido de verdade, mas as mentiras foram contadas tantas vezes que a barreira entre o falso e o verdadeiro tornou-se delgada demais. Era preciso mantê-las, porque sem elas não havia o mentiroso, não havia mais o seu próprio ser.
Foi quando olhou para baixo e percebeu que seus pés haviam desaparecido. Na verdade, ele todo estava por desaparecer. Na medida que se indagava sobre o que havia sido antes das mentiras, perdia um pedaço de perna ou era um braço inteiro que sumia, apagava-se por completo. Quanto mais a consciência lhe cutucava, mais os membros sumiam. O horror lhe abraçava com garras de onde não era possível escapar. Os olhos arregalados de desespero não queriam acreditar no que viam, mas o corpo se consumia em meio a gritos perplexos.
O povo assistia ao fato inédito sem muito o que comentar. Sufocado, o velho tentava a todo custo se manter equilibrado, mas faltaram-lhe pés, pernas e metade do tronco.
Então, o velho percebeu o vexame, era necessário ocultar aquele sufrágio pelo qual passava, o povo não poderia vê-lo naquela condição. E numa última tentativa desesperada de provar para si e para todos que nada daquilo acontecia, gritou para que o ouvissem – “É mentira! É mentira! É mentira!”.
Mas ninguém acreditou. E o velho mentiroso desaparecia balbuciando e babando horrorizado, enquanto se despedia da boa-fé de todos.

Rafael Guerreiro

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

IMPERFEIÇÕES DO FILHO DO OLEIRO

Qualquer explicação! Por favor, tragam-me uma explicação, pois contaram a mim a história errada.
Foi ainda nos tempos de eu criança quando as imagens já não se casavam mais. Da inocência restaram apenas cinzas. Dos sorrisos, apenas simulacros de um imago feito às pressas, como um vaso defeituoso do oleiro impaciente.
É que por de trás das máscaras restam tão poucas palavras... Tanto improviso trago junto ao peito que o excesso o transformou em terra sequiosa.
O espírito resta inerte, distante do mundo de lá, solto, perdido. Não há vento, quiçá nunca ouve, falta o essencial. Falta o movimento da alma.
Falta a mim mesmo num colapso temporal que se sabe terrivelmente rápido. A história que contaram solidifica-se na rapidez dos dias, endurece, se enrijece, torna-se mentira inquebrantável, que contada várias vezes passa a trazer consigo uma verdade forjada e malcheirosa.
Contaram-me a história errada. Disseram-me que o espetáculo seria livre. Afirmaram que na vida a música seria constante, e que jamais um passo de dança seria pedra de tropeço.
Convenceram-me, ainda criança, de que a vida era um belo allegro. Mas asseguro: allegro ma non troppo.
Queriam ver em mim apenas sorrisos. Contaram-me a história errada.

Rafael Guerreiro

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

CÂNONES DA LIBERDADE

Na imagem de seus olhos marejados, a realidade esquizofrenizava-se. E das várias facetas surgidas, um espectro de desespero lhe sorria sarcasticamente um agouro de sofrimento.

Deixava a casa dos pais para nunca mais voltar. Abandonava para trás histórias causadoras de um amor atávico. Para frente, apenas conseqüências de uma decisão já canonizada.


O que lhe marcava era a necessidade da alma, anseios provindos da certeza de se saber em meio aos dias que passam rápido. Sabia que com isso emaranhava-se na vida como qualquer um. E dessa normalidade extraia a pouca calma necessária para um derradeiro alento: respirar em paz, sentir a liberdade de dias autografados por sua própria responsabilidade. No fundo, a idade pulsava, requeria improvisos burladores do marasmo pré-estabelecido.

Fechou a porta pela última vez. A saída pelo portão era na verdade um batismo. Não olhou para trás.

Ao lançar-se na rua, lembrou-se do agouro e jogou-o fora como quem lança lixo ao lixo. Pisava suas dúvidas como quem pisa uvas para que o vinho surja. Com isso, um súbito rufar de árvores pelo vento forte profetizava o movimento que viria pela frente. Aprendeu seu norte, guiou-se pelo caminho do vento.

Levava consigo apenas o brilho do entusiasmo e a coragem por se saber livre. Deixava para trás o franzino e impotente tout à coup para criar raízes em sonhos sem fim.

Fez-se homem, ganhou o mundo.

Rafael Guerreiro

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

LÁGRIMAS NA CHUVA

Recentemente assisti uma vez mais ao clássico Blade Runner – O caçador de andróides, do aclamado diretor Ridley Scott. O filme é referência dentro da temática da ficção científica. Baseia-se na novela “Do Androids Dream of Electric Sheep?”, de Philip K. Dick. Por suas cenas, nos deparamos com um mundo futurista ficcional dominado pela tecnologia aplicada na fabricação de seres "replicantes" (andróides produzidos para superar os humanos em habilidades e inteligência, feitos para trabalhar nas colônias espaciais).
Assisti à versão remasterizada (The director’s cut), com novas cenas e um final diferente daquele apresentado na versão original.
Para esta crônica, extraio do filme um discurso de um dos personagens principais, o vilão “replicante” Roy Batty, estrelado por Rutger Hauer. Em uma cena magistral o tal vilão salva da morte aquele que por profissão deveria eliminá-lo, o caçador de andróides Deckard, estrelado por Harrison Ford.
Durante todo o filme é relatada a busca incessante do andróide por expandir seu tempo de vida, pois havia sido programado para se extinguir após um tempo extremamente curto.
O filme gira em torno dessa crise existencial sofrida por este personagem de vida curta, que busca incessantemente passar a diante as experiências pelas quais passou; ocorre que Deckard foi pago para eliminá-lo, pois tais seres passaram a representar um forte perigo para os humanos devido à sua superioridade física.
Mas não se preocupem, não adentrarei mais aprofundadamente ao mérito do filme, até para preservar aqueles que ainda não o assistiram. Vou direito ao ponto.
Então, na tentativa de demonstrar que sente o fim de sua existência assim como um autêntico ser humano, o personagem de Hauer lança aquele que, para minha humilde experiência cinéfila, é o mais antológico dos discursos (pelo menos nos filmes de ficção científica já feitos). Seguem as suas memoráveis palavras:
“Vi coisas nas quais vocês nunca acreditariam. Naves de ataque em chamas perto da borda de Orion. Vi a luz do farol cintilar no escuro no Portal de Tannhaüser. E todos esses momentos se perderão no tempo como lágrimas na chuva. Hora de morrer...”
São com essas palavras que trago à tona minhas experiências, minha história emaranhada no cotidiano e o sentido de minha existência.
O personagem fictício, mesmo não sendo humano, queria sê-lo, desejava perpetuar a sua própria identidade. No fundo, como qualquer ser humano, buscava a comunicação com o próximo, com aquele que o sucederia e que o tornaria imortal, nas memórias daqueles que conseguiu cativar.
Como ele, também eu e – assim creio - cada um de nós, busca este mesmo objetivo, de manter-nos vivos nas memórias dos que amamos. Buscamos o conforto de encontrar no próximo a conexão que permita contar quem somos nós mesmos, nossas fantasias e nossos sonhos pueris e lindos por sua singularidade.
Assim como o andróide, também nós, de uma forma ou de outra, trazemos conosco nossas “naves espaciais” e nossas estrelas lindas e brilhantes vistas por dentro, capazes de serem descritas apenas por nós mesmos, em palavras escolhidas para interpretarem nossas próprias experiências. Trazemos conosco a vocação para testemunhar nossa própria história.
Em nossa natureza, carregamos o anseio de poder contar de onde viemos, quem somos e para onde vamos, sem certezas, sem definições, mas com poesia e entusiasmo.
Sabemos que jamais responderemos a tais perguntas, apesar de sua importância indescritível. Mas, para termos apenas um vislumbre das respostas, deixamos que reine a poesia entre o mundo que enxergamos e aquele que não enxergamos.
Dessa forma nos imortalizamos, negamos o nada e seu vazio impedindo que nossos momentos se percam como lágrimas na chuva.


Rafael Guerreiro

Imagem: BladeRunner - O caçador de andróides (Direção Ridley Scott, 1982)