domingo, 4 de novembro de 2007

DIATRIBE


Era Finados e o cemitério estava concorrido. É tradição em minha família que visitemos os nossos mortos nesta época do ano. Neste feriado decidi que iria sozinho.
Comprei um vasinho de flores e fui ter com os mortos. Pelo caminho pude perceber as pessoas rezando em frente aos túmulos dos extintos parentes seus. Uns rezavam, outro se ocupavam de limpar os túmulos, outros ainda apenas choravam transbordando uma tristezinha antiga, daquelas que nunca se extinguirão.
Quando cheguei ao túmulo dos meus avós, ali rezei. Depositei o vasinho de flores que comprei para eles e rezei com a cabeça baixa. Uma tristezinha daquelas se abateu sobre mim e de súbito chorei. É uma sensação hipnótica, por onde o presente se desfaz em pétalas de solidão e resignação. As lembranças de todos voltam a me visitar e o presente parece ceder espaço ao passado já consumado. Lembro-me agora das festas, das histórias contadas em tons fantásticos, da sensação de acolhimento, mas também das brigas e das palavras ásperas. São fatos que jamais voltarão, exceto pelas lembranças que morrerão comigo.
Curiosamente, a saudade que carrego por todos os que já partiram suscitou em mim a vontade de querer resolver todas as diferenças que possuo com os meus próximos. Em mim se criou um anseio de resolver as questões pendentes, de pedir perdão pelos erros passados, de poder amar e guardar sempre mais e mais das boas memórias.
Era uma sensação que me preencheu por alguns instantes, até que um singelo bem-te-vi pousou sobre a cruz do túmulo. Era um bem-te-vi já velho, trazia consigo um ranço de morte, possuía a penugem esfacelada e trazia em uma das patinhas uma ferida que o impedia de firmar as duas no chão.
O bem-te-vi pousou em cima da cruz e ficou diante de mim. Enquanto descansava, suspendia a pata machucada, mas não alçava vôo, ficou parado diante de mim. Enxuguei minhas parcas lágrimas e comecei a observá-lo. De súbito, uma angústia se abateu sobre mim. Era vontade de ajudar aquele passarinho, de lhe curar a patinha. Mas eu sabia que se me movesse ele se espantaria e voaria para longe, e a sensação de impotência me fez mais triste.
Foi quando o velho passarinho profetizou a meu respeito:
“Minha pata dói, mas não te conheço. Prefiro a amargura da dor e da falta de liberdade que a ajuda proveniente de estranhos capazes de me matar.
Entre nós há um abismo insuperável, por onde a comunicação não se dá. Sei que sofro e que preciso de ajuda, mas é inútil qualquer tentativa de aproximação. Nossas espécies são diferentes, somos seres diferentes e jamais nos entenderemos.
Estava escrito que entre nós seria assim, portanto, não se aflija comigo. Eu morrerei seguindo meu curso natural.
Mas assim não deveria ser entre vocês, humanos, irmãos de mesma língua e afeto. Entre vocês a comunicação também é difícil, e alguns se dão ao luxo de morrer sem amar e se deixar amar. Entre você e eu há um abismo, mas entre você e seu próximo deveria haver uma ponte mágica, não a destrua.
Às vezes se tenta, mas não se encontra formas de romper a barreira com o próximo, ele está fechado e não ouvirá. Então não há diálogo e tudo se rompe em profundas amarguras. Mas saiba que os outros também tentarão e você também frustrará tentativas de amor.”
E o velho passarinho voou. Quando voltei a mim, senti que era hora de ir embora. O tempo urge e há muito que ser feito antes do final.

Rafael Guerreiro

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