sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

ASPECTOS DA ANSIEDADE

Parafraseando um grande amigo, ressalto em brado aberto: "Há de dar tempo".

Rafael Guerreiro

sábado, 29 de novembro de 2008

SOMBRAS MARÍTIMAS

Em minha vida, há momentos de temidas introspecções. Há dias em que contemplo, aturdido, os abismos que me rodeiam. São efervescências, lucubrações sem fim trazidas no seio de um canchal de vitupérios e decantações.
Há dias em que me admira a sorte (ou azar) que trago estampado no peito errante. São percepções acerca do conjunto de momentos que formam minha vida. São momentos de abstrações acerca dos fatos e vidas que cercaram e ainda cercam meus sonhos.
De dentro para fora, surgem variações acerca da vida, incertezas bem vindas que convivem comigo em estreita relação de mutualismo. Esforço-me em procurar sentidos absortos nesse estardalhaçar de possibilidades. Esforço-me para controlar o medo das perdas certas e purgar ansiedades intrépidas em meio a esse mar de indeterminações.
Ah! Como esse mar me fascina e me lapida! Como é fácil afogar certezas de juízos néscios! Basta um mergulho nos ditames da alma, um olhar privilegiado rumo ao centro das percepções e todas as certezas são deitadas por terra num gesto certeiro, clara demonstração de inegável superficialidade.
É nesse mar eterno que resido, procurando abrigo em conchas submarinas onde ainda resiste o oxigênio. Procuro alimento incerto em fauna e flora nativas e estranhas, frutos desse mar de águas turvas e oblíquas.
Mas é bem aí que, de tempos em tempos, recebo visitas de correntes mornas, onde lanço meu corpo em obtusas manobras, e deixo meu peso ao sabor das marés. Como um escafandrista, pairo por sinuosidades longínquas, sombras onde reencontro infâncias e sabores. Por lá, nas cadências abissais, divirto-me com carrinhos de madeira e estilingues de precisão para depois retornar às velhas conchas, onde ainda resiste o oxigênio.
Quando volto das sombras, respiro um ar ainda úmido, de odores marítimos que se perdem com o decurso do tempo.
Quando volto das sombras, meto-me a ler ficções de Borges, procurando deixas que me permitam silenciar rumores, acalmar angústias e preservar os sonhos.

Rafael Guerreiro

terça-feira, 2 de setembro de 2008

NOVAS VIAGENS

Eis que começou assim de repente e acabou num susto seco. Foi de supetão e não teve mais jeito. De súbito, os cinco anos que lhe foram contados antes de lhe serem entregues haviam se esvaído sem qualquer pudor.
Ao longo dos anos, ele perambulava pelas ruas e pela praça com as mãos nos bolsos da calça jeans sem qualquer pretexto.
Fumou, bebeu, deu risadas, escreveu, riscou, amou e chorou. Quando se deu conta, seus olhos ganharam uma quebra de página, um pasmem sem qualquer grito.
Na face, um sulco de vida entortava a pele ainda rija. Eram as conseqüências da noite que tanto amava.
E agora, não desejava o final, pedia uma sobrevida egoísta na demonstração mais humilde de que ainda queria um pouco mais, só um pouco mais...Talvez sejam as pessoas daquele lugar, ou ainda daqueles cinco anos de noites, letras e sonhos.
Mas ele sabe que seu pedido traduz-se numa bagatela. Logo sacode a cabeça e lancina o olhar. Eis o caminho a tua frente.
Ele olha para o lado e, feliz, sabe que viveu. Sabe que agora as viagens serão mais altas. Lembra-se então dos que caminharam com ele e que agora preparam-se para viajar.
Deixa de graça um sorriso maroto e, numa prece quieta, evoca sua sinceridade para desejar baixinho que um dia todos viajassem juntos...




Rafael Guerreiro

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

ENTRE AMIGOS

Havia um arquipélago de seduções onde eu dormia estéril. Minhas habilidades físicas jaziam rotas no silêncio desmedido da noite.

Reinava um sonho preto-e-branco de intenções veladas. Os poucos recortes que sobraram dele são como brilhos caóticos de um diamante impalpável.

As poucas recordações do sonho, por qualquer motivo ainda excêntrico, congregam apenas imagens foscas de um lugar distante, onde acontecia um diálogo sério, versando sobre identidades e papéis.

Alguns livros esparramados por uma mesa onírica ditavam o tom erudito do diálogo. Neste momento, meu corpo não era mais que a imagem taciturna do vazio. Nos instantes do sonho, a vida acontecia em outro lugar, distante, entre amigos. E meu corpo era apenas a testemunha de uma atividade clarividente.

Era um lugar de pessoas sérias, mas não trago comigo mais que suas vozes temperadas. As faces por trás das vozes são como um mistério metafísico incapaz de qualquer adivinhação. Senti-me por alguns instantes como que em meio a profetas de palavras certeiras.

Deito agora ao fio da pena apenas as impressões imprecisas do lugar onde estive. Lanço no papel rabiscos de um rascunho grosseiro, caricaturas ensangüentadas feridas por navalhas de letras.

Mas nas imagens que guardo nos bateres do peito, brota um alvorecer de sentimentos intangíveis. Uma certeza feita de passos n’água e visões diáfanas.

Pressentimentos da volta formavam um risco perplexo entre a junção de mente e corpo. Nas paragens de cá as horas corriam alucinadas e demandavam o retorno.

Chegava o final da noite e do sonho e acontecia ali o retorno às paredes do quarto e às penumbras do sol ainda por nascer. Aos poucos, meus olhos se abriram ainda aturdidos e confusos de luzes e sombras.

O dia nascia. Levantei-me da cama e, de súbito, abri a janela num gesto certeiro. Contemplei o canchal de luzes num silêncio aturdido e fiz do momento uma prece humilde.

Respirei o ar da manhã como quem aspira certezas atávicas e desejei o dia num ardor de pulso e alma. Guardei num soluço uma alegria singela e senti-me feliz por saber que naquele dia tão lindo respirei satisfeito sabores de longe.

Rafael Guerreiro

EM BUSCA DO SOL

Minha namorada e eu recentemente fizemos uma viagem de ônibus cruzando o sul do Estado de Minas Gerais.

Pelas cidades que passamos, acabei por conhecer várias pessoas. Eram homens e mulheres que passavam pelas rodoviárias, indo e voltando dos mais variados lugares.

Alguns traziam no peito uma saudade antiga, uma tristeza das mais solitárias; outros saíam forçados de seus lares, tentando a vida do jeito que podiam. Mas todos, de certa forma, traziam consigo suas próprias lembranças. Eram narradores solitários que nunca esperaram por qualquer ouvinte interessado em suas histórias.

Quando regressávamos a Franca, passamos pela rodoviária de uma das muitas cidades que paramos. Eu estava cansado e faminto. Esperava ansioso o ônibus ainda incerto, pois no guichê da rodoviária, nos disseram que as passagens haviam se esgotado e, por isso, talvez não poderíamos chegar a Franca no mesmo dia. Mas mesmo assim, ficamos na madrugada esperando pela sorte.

Enquanto esperávamos, um viajante qualquer se aproximou. Tratava-se de um vendedor ambulante aguardando seu ônibus. Era da Bahia e trazia consigo uma enorme caixa de isopor equilibrada na cabeça e um violão junto ao ombro.

Num primeiro momento não dei conversa, mas, de súbito, passamos a conversar enquanto o ônibus demorava. Então, contou-me que já viajou por todo o Brasil, procurando as festas e jogos de maior calibre, onde se alojava tentando vender suas latinhas de bebida. Quando terminavam as festas e os jogos, juntava seus pertences e partia para outras paragens, em busca do sol.

Falou ainda que diante das muitas andanças que fazia, passou a colecionar os bilhetes das viagens. De tão exóticas e distantes - dizia ele - mereceram ser postas numa caixa bem guardada em sua casa.

Mas no meio do assunto, sem cerimônias, foi-se embora tomar o ônibus que acabara de chegar. É uma pena, porque ele se foi e não tive tempo de saber o porquê de carregar junto com tamanha caixa e peso um violão pendurado com custo junto ao ombro. Ora, se estava trabalhando, acredito que não teria muito tempo para tocar músicas, tão pouco apresentá-las ao público.

Foi-se embora e sumiu na multidão. Nunca saberei de fato o que pretendia com o violão. Resta-me apenas imaginar alguma coisa, um sentido para aquele instrumento.

Talvez pretendia trazer em seus tocares a lembrança de sua terra, quiçá um hino triste de sua sina de viajante. Poderia ainda ser o violão apenas um alívio que encontrou para suportar a solidão de tantos quartos estrangeiros pelos quais passou.

Mas não teve jeito. Foi-se embora deixando-me com a curiosidade aguçada e um sentimento inacabado.

Em minha memória, ficaram apenas uma caixa de bilhetes de viagem e a imagem do violão, que por certo ressoará melodias de lugares distantes, tocadas na toada triste do viajante em busca do sol.

Rafael Guerreiro

ESCUTEMOS, POIS, A BANDA

Começo por um assunto engraçado. Eu caminhava pela rua quando, de súbito, em minha frente um garotinho levou um tropicão. Certamente, o garotinho não contava mais de dez anos. A garotinha que o acompanhava (muito provavelmente sua irmã) desatou uma risada das mais gostosas.

O garotinho não machucou, pelo contrário, logo saiu rindo junto com sua suposta irmã e foram embora degustando o acontecido!

Enquanto isso, eu passava no meio deles e não pude deixar de repará-los. A risada alegre e pura foi tão espontânea que não teve jeito, contagiou-me! Comecei a rir de canto de boca e passei por eles enquanto lembrava de quando eu costumava rir daquele jeito.

Aos olhos dos meus leitores, tal fato pode mesmo parecer apenas tolice, mas mesmo assim resolvi escrever sobre o acontecido.

Na verdade, escrevi esta crônica para mim mesmo, para não me esquecer de dar boas risadas como aqueles garotos. Esta crônica cabe-me antes como uma advertência, um conselho inominado sobre algo simples, mas esquecido por mim.

Não sei ao certo os motivos, talvez sejam os problemas jurídicos com os quais meus estudos me levaram a lidar diariamente; talvez sejam ainda as formalidades dos ritos processuais. Seja como for, há tempos minha vida se encerra em papéis e computadores e não creio serem estes objetos muito engraçados, dignos de boas risadas espontâneas.

Portanto, talvez seja daí onde surge meu espanto diante de uma simples risada gostosa, e este espanto é algo preocupante, um termômetro contando já altos graus.

A vida não deveria se espantar com certas simplicidades e alegrias como esta, desprovidas que são de malícias. Elas não deveriam apresentar-se como tão raras.

Antes seria melhor fazer dos fatos não mais que uma simples passagem de uma alegre banda que chega cantando e tocando. Às vezes ela até passa, como passaram aqueles garotinhos, mas a seriedade dos problemas tende a cegar-me os olhares.

Eis aí a esfinge dos sérios: transformar os dias e sua gravidade na cadência de uma banda que passa!

Deixemos, pois, a banda fazer-se ouvir e passar. Não é mais certo senão entusiasmar-se com ela. É um santo remédio essa banda, suas músicas, sua alegria de ontem e hoje.

Escutemos, pois, a banda, ela resolve por si só alguns problemas sem solução. É verdade, acreditemos em sua homeopatia: funciona!

O remédio é santo, o Grande Chico já o disse. E não é que até mesmo o homem sério que contava dinheiro parou para vê-la, ouvi-la e dar-lhe passagem?

Rafael Guerreiro

segunda-feira, 21 de abril de 2008

É NESSE LEVA-E-TRAZ QUE EU ME DESCUBRO...

Mas o que é isso? Não há mais choro, nem morte. O que tenho é antes alívio.
Tenho amigos, livros e trago em mim facetas insondáveis. Não tenho tesouros meus, embora eu usasse mesmo mais os dos outros.
Trago em mim um encontro marcado, algo que tinha que acontecer e que aconteceu. É a minha história acontecendo, são os dias e as pessoas que eles trazem e levam. Nunca vi nada que trouxesse e levasse tantas coisas de uma só vez. Eficiência de fazer inveja em qualquer Correio ou Fedex!
E não é que para mim trouxeram boas pessoas! Muito, mas muito melhores do que eu!
Trouxeram também sonhos, tentativas e novas descobertas. E eu tenho que ficar por aí, dando conta de inventar um jeito de lidar com tanta fauna e flora diferente!
São mesmo uns trovadores esses dias. Sempre convidando a gente a acreditar em suas serenatas e trovas diárias. E se não acreditamos nesses dias, se não nos entregamos aos seus caprichos o que nos resta?
O bom é que pelo menos eles têm um senso de humor afinado e adoram uma bela troça.
Esses dias.... Ah! Esses dias e suas troças curiosas... Não é que agora me trouxeram um livro e dois amigos?

Rafael Guerreiro

terça-feira, 11 de março de 2008

MAR DE RESSACA

Quantos são ainda os tormentos que terei de expurgar como que exorcismos de mim mesmo? Quantos são ainda os beijos de suplício ensandecido dos quais carecerei?
Deixo aos pés da mansarda apenas a certeza de que seguro a linha como o velho de Hemingway, até o sangue transbordar da carne para a água.
No encontro comigo mesmo, espero que a maré traga algum tesouro, alguma garrafa que contenha os desejos mais bem guardados, os objetos mais particulares que os escafandristas não encontraram em nenhum mar profundo.
Deito os cotovelos na janela de um ocaso inóspito e ouço do mar serestas intangíveis, sons de um compasso muito próximo, sons de uma toada feita a dois.
Guardo ainda dentro de mim o entusiasmo das ondas, o encontro com meus sentimentos tão símiles da dor, tão fomentadores do vento. Guardo ainda em meus desertos sequiosos a carícia de um amor, o desencontro amorfo de vitórias e derrotas.
Sei que do tempo espero respostas, sei que do mar espero similitudes, anseio por descobrir invasões bárbaras que fizessem em mim mesclas de cores e corpos. Espero do mar sensações de aconchego onírico, onde eu possa saciar-me a mim mesmo em êxtases de liberdade.
Naquela janela de fronte ao mar deito minha vida, esperando dele uma fidelidade inviolável. Com o olhar fixo permanecerei ali, aguardando daquele oceano inspirações tão raras, tão sedentas de vida. Ficarei ali como quem aguarda no porto. Sei que minha profissão será a espera no porto pelo encontro inesperado de ventos intermitentes. Espero no porto pela maré de toques e afagos. Espero no porto por um amor que chegue com as ondas e que fique nas redes que lancei naquele mar de ressaca.

Rafael Guerreiro

sábado, 8 de março de 2008

RECORDAÇÕES DA TERRA DOS VIVOS

São ainda pujantes as sendas do passado entrelaçadas por entre as sinuosidades do presente. Na infância, as horas tendem a se perpetuar em cada instante, em cada sensação nova que preenchia meus pensamentos e sorrisos.
Por aqueles dias recheados de um brilho intenso e leve, onde o movimento dos instantes era perene, criando a escassa impressão de que o tempo não existia, era eu que por mais que sofresse as inconformidades alheias sentia antes em mim a presença de um Deus concreto, incapaz de se mostrar nos elementos de qualquer teoria. Eu podia segurá-Lo na mão, senti-Lo encarnado em mim tão concretamente como qualquer maçã que eu comia com gosto.
Nas manhãs de sol, onde visões diáfanas enchiam de cor e vida o vaso novo que eu trazia em mim, eu voltava meus interesses todos para o desvendar de enigmas de uma vida curta ainda. Eram os movimentos dos quais hoje já não me disponho, eram sutilezas de uma alma incólume dos mistérios invisíveis que viriam a permear fatalmente apenas o mundo dos adultos. Mas como eram doces aqueles enigmas, como traziam em si paladares fortes de iguarias incertas e distantes. Como aquele tato, aquele paladar, aquele olfato e aquela visão eram tão simplesmente certas, postas diante de mim nitidamente como nada jamais ousou apresentar-se.
Era essa a certeza que trazia até mim esse Deus de quem a pouco falava. Eram essas as sensações que a passos lentos e titubeados foram aos poucos construindo em mim estalactites, fundações de uma gruta absorta, inexoravelmente infinita, formada a duros custos na medida em que minha idéia do divino deixava irremediavelmente meus sentidos, minha concretude tão certa e palpável para percorrer agora apenas as incertezas de sinapses confusas e obscurecidas. Era esse o legado advindo da queda daquele maravilhoso, porém agora acanhado, anti-mundo de negação a tudo o que não se podia ver nem tocar.
E como o tempo me empurrou para o colapso inescusável de meu próprio parto. Como foi que aos poucos minhas certezas foram lentamente aniquiladas por dias insólitos e suas dores vis? Como meus sentidos aos poucos passaram a me enganar e a me confundir? Como, justamente eles, meus sentidos nos quais eu depositava romanticamente minhas certezas passaram agora a negar-me as cores e luzes que antes somente eu avistava em meus próprios sorrisos? Não sei como o processo se deu. Não sei como permiti a mim saciar-me mais do vinho que das belas uvas de outrora; mas o que restaram dos sorrisos e de todo aquele mundo sortido de paladares fortes e marcantes, são na verdade tentativas de negar o implacável fluxo do tempo. E por este exercício vital, bem pouco ainda consigo enxergar daquele antigo Deus por onde tudo fazia sentido. Era Ele imerso em sinestesias multicores, mas agora respira apenas de tempos em tempos, quando, despido de minhas verdades sérias, alço vôo em direção aos ventos de outrora, que insistem em querer arejar meu pesado músculo que dolorosamente perdeu-se nos meandros de abstrações sem nenhum sabor.

Rafael Guerreiro
Imagem: A Criação de Adão, Michelangelo Buonarroti, 1511. Afresco, 280 x 570 cm. Teto da Capela Sistina (Roma)

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

PROFISSÃO DE FÉ

Lançar mão de minhas idiossincrasias e pô-las todas no papel é tarefa que sempre me apetece. Talvez sejam apenas frutos de uma mente inquieta, incansavelmente inquieta e investigadora, talvez apenas demonstrem as entranhas de um inconsciente perturbado. Não há meios de se saber isso. O que sei é que nasci assim, com esse ímpeto de escritor opaco, sem referências nem similitudes.
Por vezes essa sina de escrever transtorna meu chão fatalmente concreto e estável. É que por de trás das letras começam a surgir toda sorte de impressões e sensações que trago em mim sobre o mundo que conheço. Seriam apenas conseqüências de não se ter um rumo a que seguir? Seriam espasmos de uma ansiedade latente e perturbadora? Deixo aos sábios as respostas de tais indagações. O fato é que nasci assim e me insiro na vida pela lógica escrita que teço.
Deixo igualmente aos sábios a tarefa de analisarem meu pudor lógico e textual. Prefiro ficar apenas com o escasso ímpeto natural de continuar esta saga escrita que narra minhas impressões, sensações, conclusões e erros sobre minha vida. Afinal, o que escrevo não poderia deixar de ser senão para que os outros lessem, pois ninguém ascende uma vela para pô-la debaixo da mesa, conforme o que posso extrair da Bíblia.
Digo apenas que venha o momento que vier, sejam os equívocos os que ocorrerem, mas trarei sempre em mim as sombras daqueles que passaram pela grande marcha e não se permitiram aquietar-se. Seja para concluir que o sertão está dentro da gente, seja para receber do anjo torto que vive nas sombras um destino sublime. Seja ainda, para me exilar em uma montanha mágica e me transfigurar ou ainda para arrancar do amor olhares de uma cigana oblíqua e dissimulada.
E digo que terei filhos e que transmitirei a eles o legado de minha miséria.

Rafael Guerreiro

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

DURANTE A CHUVA

Naqueles pingos de chuva que caiam, deslizava o verbo ser em cadências repetidas.
Chovia uma chuvinha fina, daquela que faz-nos prender a nós mesmos num estado de análise. No fundo, o motivo dessa melancolia era o tempo que teimava em passar tão rápido. Essa era a esfinge que consumia meus pensamentos.
Recuso-me a acompanhar o tempo, prefiro a quebra da cadência repetida das horas sem adjetivos. Debruço-me em déjà vus inesperados como quem procura advérbios para a alma.
Olho para o chão próximo do meu quarto. Vejo apenas as ondas que se formavam pela queda dos pingos d’água amontoados. Esse era o movimento que eu buscava, desordenado, caótico, sem referências.
A imagem onírica dos pingos que caíam, criava em mim a sensação de negar qualquer ordem artificial, qualquer tentativa ensandecida de regrar o presente em horários estabelecidos, em neuroses que me prendem num cárcere de grades invisíveis.
Fecho os olhos num momento sem fim, onde já não há mais o tempo nem o mundo contido em suas leis humanas. Escuto simplesmente os pingos d’água caindo, caóticos, livres, comunicando a mim o recado nítido de que amam o que são, porque são livres enquanto existem.

Rafael Guerreiro

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

ORGULHO FERIDO

Por estes dias que passaram, um desconhecido me insultou. Impossível saber quem foi, pois em nenhum momento esta pessoa disse quem era e quais os seus motivos. Tudo que sei é que fui alvo de insultos por um desafeto anônimo hipotético.
Situação curiosa essa, porque nunca achei que tais coisas aconteceriam comigo de forma tão inesperada.
O fato é que o incidente acabou por se transformar num curioso exercício. Passei então a moldar um rosto para o tal hipotético “boca-suja”. Sondei a dispensa de minha memória em busca de alguma lembrança do passado que pudesse justificar a atitude desse alguém, mas nada encontrei que pudesse fornecer um ponto de partida, quiçá uma suspeita.
Inconformado, passei a analisar o presente e tive a mesma sensação de que ninguém traria consigo algo que o motivasse a desferir grosserias contra mim.
E o rosto não se formava. O insulto abstrato se mantinha amorfo em minhas lucubrações, sem nenhum autor palpável, sólido. Apenas ficava lá, rindo de mim.
Na verdade, com o tempo pude perceber que meu inconformismo provinha de minha vaidade, de minha não aceitação de que coisas como essa pudessem ocorrer. Foi quando descobri um molde para o tal fulano “boca-suja”. Pintei-lhe com tintas de vaidade e moldei seu rosto com matéria ensandecida de orgulho. Ficou horrível! Ótimo pra dar boas pancadas!
Foi o que fiz, nessa aberração que criei, descarreguei toda incompreensão que me restava. Bati tanto que lhe abri muitas feridas. Deixei aquela coisa horrível tão ferida que mais parecia matéria inerte, morta. Parei apenas quando a coisa já não se movia, mas sei que não o matei, porque ninguém morre de orgulho ferido.


Rafael Guerreiro

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

O SUMIÇO DO MENTIROSO

Era um senhor astuto, de frases e olhares ardilosos. Trazia consigo ostentações imaginárias e descrevia sempre em suas conversas situações inusitadas. Acostumou a mentir desde que se entendia por gente. Tal prática foi tão exercitada que passou a esquecer quem realmente era.
Mas por de trás das aparências, mentiras eram sutilmente aplicadas, introduzidas no cotidiano como um vírus inoculado.
E o velho mentia, sustentou mentiras por toda uma vida. E mentia e mentia e mentia.... Passou a vida mentindo, descaradamente. É bem verdade que muitas delas nunca serviram para nada, eram apenas reflexos de um espírito inconformado consigo mesmo. Na verdade, representavam farpas trocadas pelo divórcio entre o próprio sujeito e sua idiossincrasia.
Era fato que mais cedo ou mais tarde as tais mentiras se deitariam por terra.
Mas o que assustava era a necessidade que o tal sujeito tinha de mentir. O homem incorporou tanto a mentira que mais lhe parecia uma droga. Usava-se dela como um viciado que passa a vida beirando as bocas de fumo. E por de trás das palavras inverossímeis, o mau cheiro lançava sortilégios que por tanto tempo ludibriavam os inocentes que caíam neles.
E desse jogo, saíram toda sorte de imaginações. O mentiroso mais parecia um artista, falava de como se tornou maçom, mas nunca havia recebido sequer um convite. Dizia com veemência ser profundo conhecedor das leis, dizia até mesmo ser bacharel em Direito, mas na verdade não havia terminado nem o segundo grau. E ainda, por suas mentiras, já viajou o mundo todo, conheceu os Estados Unidos e a França, a Bolívia e a Colômbia. O Brasil, então, conhecia do Oiapoque ao Chuí.
Em suas tramas, conhecia políticos influentes. Todos se admiraram quando disse que fora amigo de Ulisses Guimarães, o político das “diretas já”, e dizia que pouco tempo antes de sua morte havia recebido uma carta do amigo ilustre.
E adorava os detalhes, contava com inconfundível entusiasmo histórias de quando percorreu as matas de minas gerais, onde viu lobos-guarás, onças-pintadas e tantas outras coisas que não caberiam nem mesmo num desenho animado.
Na escola então, nunca havia tirado nota menor que o próprio dez, e acrescentava o gravame de estudar sempre em cima do lombo do cavalo que o conduzia, pois a dificuldade era muita. Detalhe: a nota dez sempre vinha acompanhada de um modesto “honra ao mérito”.
Claro que com tanta criatividade seu altruísmo não poderia ficar esquecido. Às vezes, quando comprava um peru de natal ou alguma outra iguaria mais cara, adorava contar em casa que o havia ganho como recompensa por ter ajudado uma suposta pobre senhora que passava por problemas com seu carro. Era mesmo um “gentleman”!
E assim foi todos os dias, embaralhados, permeados por mentirinhas, por vezes inocentes, por vezes dolorosas, mas nunca mantidas por muito tempo. O fato é que a verdade sobre sua vida aos poucos foi sumindo, nem mesmo ele era capaz de se lembrar, ou talvez não queria.
A sensação que anestesiava quem o escutava era a dó, deixavam passar as mentirinhas para não maltratarem aquela alma pueril. Contudo, era bem verdade que o pavio fora se consumindo ao longo do tempo junto com a paciência e, aos poucos, o exílio social passou a ser aplicado como corretivo. A descrença passou a ser latente entre os ouvintes.
Com ironia e até mesmo com adequada dose de risadas, passaram a lembrar mais das mentiras contadas do que do próprio mentiroso. Foi quando o ostracismo o infectou como que uma doença incurável e degenerativa. Quando ele aparecia, enxergavam apenas um emaranhado de palavras sem valor, guardadas por uma existência sem crédito.
Inconformado, sentiu que precisava mentir mais e mais para se sustentar. Era preciso fazer os outros acreditarem que ele era influente, que conhecia os políticos poderosos, o mundo com suas maravilhas e que viveu uma vida de aventuras. Mas quando abria a boca, os que ouviam deitavam tudo por terra com um simples olhar de descaso.
Mas o velho mentiroso ainda tentava, extraía de sua imaginação resquícios de criatividade, juntava os restos que lhe sobravam e tecia mosaicos imaginários onde misturava verdade e mentira. Era o desespero que lhe acometia. Era a existência que lhe escorria pelas mãos. Não poderia viver agora sem as suas criações. Foram contadas por tanto tempo que agora negar-lhes era o mesmo que ter um membro amputado.
Não! Era preciso mantê-las, porque para ele eram a mais pura verdade. Em meio a suores desesperados tentava se lembrar do que havia sido de verdade, mas as mentiras foram contadas tantas vezes que a barreira entre o falso e o verdadeiro tornou-se delgada demais. Era preciso mantê-las, porque sem elas não havia o mentiroso, não havia mais o seu próprio ser.
Foi quando olhou para baixo e percebeu que seus pés haviam desaparecido. Na verdade, ele todo estava por desaparecer. Na medida que se indagava sobre o que havia sido antes das mentiras, perdia um pedaço de perna ou era um braço inteiro que sumia, apagava-se por completo. Quanto mais a consciência lhe cutucava, mais os membros sumiam. O horror lhe abraçava com garras de onde não era possível escapar. Os olhos arregalados de desespero não queriam acreditar no que viam, mas o corpo se consumia em meio a gritos perplexos.
O povo assistia ao fato inédito sem muito o que comentar. Sufocado, o velho tentava a todo custo se manter equilibrado, mas faltaram-lhe pés, pernas e metade do tronco.
Então, o velho percebeu o vexame, era necessário ocultar aquele sufrágio pelo qual passava, o povo não poderia vê-lo naquela condição. E numa última tentativa desesperada de provar para si e para todos que nada daquilo acontecia, gritou para que o ouvissem – “É mentira! É mentira! É mentira!”.
Mas ninguém acreditou. E o velho mentiroso desaparecia balbuciando e babando horrorizado, enquanto se despedia da boa-fé de todos.

Rafael Guerreiro

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

IMPERFEIÇÕES DO FILHO DO OLEIRO

Qualquer explicação! Por favor, tragam-me uma explicação, pois contaram a mim a história errada.
Foi ainda nos tempos de eu criança quando as imagens já não se casavam mais. Da inocência restaram apenas cinzas. Dos sorrisos, apenas simulacros de um imago feito às pressas, como um vaso defeituoso do oleiro impaciente.
É que por de trás das máscaras restam tão poucas palavras... Tanto improviso trago junto ao peito que o excesso o transformou em terra sequiosa.
O espírito resta inerte, distante do mundo de lá, solto, perdido. Não há vento, quiçá nunca ouve, falta o essencial. Falta o movimento da alma.
Falta a mim mesmo num colapso temporal que se sabe terrivelmente rápido. A história que contaram solidifica-se na rapidez dos dias, endurece, se enrijece, torna-se mentira inquebrantável, que contada várias vezes passa a trazer consigo uma verdade forjada e malcheirosa.
Contaram-me a história errada. Disseram-me que o espetáculo seria livre. Afirmaram que na vida a música seria constante, e que jamais um passo de dança seria pedra de tropeço.
Convenceram-me, ainda criança, de que a vida era um belo allegro. Mas asseguro: allegro ma non troppo.
Queriam ver em mim apenas sorrisos. Contaram-me a história errada.

Rafael Guerreiro

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

CÂNONES DA LIBERDADE

Na imagem de seus olhos marejados, a realidade esquizofrenizava-se. E das várias facetas surgidas, um espectro de desespero lhe sorria sarcasticamente um agouro de sofrimento.

Deixava a casa dos pais para nunca mais voltar. Abandonava para trás histórias causadoras de um amor atávico. Para frente, apenas conseqüências de uma decisão já canonizada.


O que lhe marcava era a necessidade da alma, anseios provindos da certeza de se saber em meio aos dias que passam rápido. Sabia que com isso emaranhava-se na vida como qualquer um. E dessa normalidade extraia a pouca calma necessária para um derradeiro alento: respirar em paz, sentir a liberdade de dias autografados por sua própria responsabilidade. No fundo, a idade pulsava, requeria improvisos burladores do marasmo pré-estabelecido.

Fechou a porta pela última vez. A saída pelo portão era na verdade um batismo. Não olhou para trás.

Ao lançar-se na rua, lembrou-se do agouro e jogou-o fora como quem lança lixo ao lixo. Pisava suas dúvidas como quem pisa uvas para que o vinho surja. Com isso, um súbito rufar de árvores pelo vento forte profetizava o movimento que viria pela frente. Aprendeu seu norte, guiou-se pelo caminho do vento.

Levava consigo apenas o brilho do entusiasmo e a coragem por se saber livre. Deixava para trás o franzino e impotente tout à coup para criar raízes em sonhos sem fim.

Fez-se homem, ganhou o mundo.

Rafael Guerreiro

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

LÁGRIMAS NA CHUVA

Recentemente assisti uma vez mais ao clássico Blade Runner – O caçador de andróides, do aclamado diretor Ridley Scott. O filme é referência dentro da temática da ficção científica. Baseia-se na novela “Do Androids Dream of Electric Sheep?”, de Philip K. Dick. Por suas cenas, nos deparamos com um mundo futurista ficcional dominado pela tecnologia aplicada na fabricação de seres "replicantes" (andróides produzidos para superar os humanos em habilidades e inteligência, feitos para trabalhar nas colônias espaciais).
Assisti à versão remasterizada (The director’s cut), com novas cenas e um final diferente daquele apresentado na versão original.
Para esta crônica, extraio do filme um discurso de um dos personagens principais, o vilão “replicante” Roy Batty, estrelado por Rutger Hauer. Em uma cena magistral o tal vilão salva da morte aquele que por profissão deveria eliminá-lo, o caçador de andróides Deckard, estrelado por Harrison Ford.
Durante todo o filme é relatada a busca incessante do andróide por expandir seu tempo de vida, pois havia sido programado para se extinguir após um tempo extremamente curto.
O filme gira em torno dessa crise existencial sofrida por este personagem de vida curta, que busca incessantemente passar a diante as experiências pelas quais passou; ocorre que Deckard foi pago para eliminá-lo, pois tais seres passaram a representar um forte perigo para os humanos devido à sua superioridade física.
Mas não se preocupem, não adentrarei mais aprofundadamente ao mérito do filme, até para preservar aqueles que ainda não o assistiram. Vou direito ao ponto.
Então, na tentativa de demonstrar que sente o fim de sua existência assim como um autêntico ser humano, o personagem de Hauer lança aquele que, para minha humilde experiência cinéfila, é o mais antológico dos discursos (pelo menos nos filmes de ficção científica já feitos). Seguem as suas memoráveis palavras:
“Vi coisas nas quais vocês nunca acreditariam. Naves de ataque em chamas perto da borda de Orion. Vi a luz do farol cintilar no escuro no Portal de Tannhaüser. E todos esses momentos se perderão no tempo como lágrimas na chuva. Hora de morrer...”
São com essas palavras que trago à tona minhas experiências, minha história emaranhada no cotidiano e o sentido de minha existência.
O personagem fictício, mesmo não sendo humano, queria sê-lo, desejava perpetuar a sua própria identidade. No fundo, como qualquer ser humano, buscava a comunicação com o próximo, com aquele que o sucederia e que o tornaria imortal, nas memórias daqueles que conseguiu cativar.
Como ele, também eu e – assim creio - cada um de nós, busca este mesmo objetivo, de manter-nos vivos nas memórias dos que amamos. Buscamos o conforto de encontrar no próximo a conexão que permita contar quem somos nós mesmos, nossas fantasias e nossos sonhos pueris e lindos por sua singularidade.
Assim como o andróide, também nós, de uma forma ou de outra, trazemos conosco nossas “naves espaciais” e nossas estrelas lindas e brilhantes vistas por dentro, capazes de serem descritas apenas por nós mesmos, em palavras escolhidas para interpretarem nossas próprias experiências. Trazemos conosco a vocação para testemunhar nossa própria história.
Em nossa natureza, carregamos o anseio de poder contar de onde viemos, quem somos e para onde vamos, sem certezas, sem definições, mas com poesia e entusiasmo.
Sabemos que jamais responderemos a tais perguntas, apesar de sua importância indescritível. Mas, para termos apenas um vislumbre das respostas, deixamos que reine a poesia entre o mundo que enxergamos e aquele que não enxergamos.
Dessa forma nos imortalizamos, negamos o nada e seu vazio impedindo que nossos momentos se percam como lágrimas na chuva.


Rafael Guerreiro

Imagem: BladeRunner - O caçador de andróides (Direção Ridley Scott, 1982)