sábado, 18 de agosto de 2007

ANTOLOGIA DO SILÊNCIO

Ele parecia sempre sério. Rosto sisudo, poucas eram as oportunidades realmente sinceras para dar um sorriso autêntico. Não se tratava de uma incompreensão do mundo, não era alhures rebeldia, era apenas perplexidade. A realidade para ele firmava-se em pilares paradoxais. Ora a religião fazia sentido, ora o nihilismo antiteísta projetava-se como a mais sincera demonstração de um sentimento pessoal e genuíno.
Ele pensava na crise dos seus paradigmas, na crise dos padrões que o levavam à sua identidade e percebia que o problema não era esse. A grande esfínge devoradora de sua vida estava na busca pelo seu próprio espaço. Já havia a muito cansado da convivência com os pais. Ele os amava mais que a qualquer outra coisa na vida. Era compreensivo nesse ponto, sabia que eles consistiam-se na sua maior herança.
Não era rebeldia, era apenas o sentimento de perceber-se incapaz de promover a completude de sua vida nas condições em que estava submetido na casa de seus pais.
O velho tinha suas neuroses, sua mãe os seus medos. Tudo era compreensível, mas há tempos havia a necessidade de que tudo aquilo se transformasse.
Essa consciência dificultava as coisas, tornava tudo mais profundo. Ele era filho único, suas responsabilidades firmavam-se sempre com maior veemência, e ele sabia disso e se entristecia.

***

Na universidade, seus estudos lhe tomavam um tempo considerável. Por lá tinha alguns amigos, algumas garotas também passaram, mas só passaram. O seu coração não encontrava morada certa, não havia ainda experimentado a sensação de um grande amor.Às vezes, o que lhe sobrevinha era a dúvida de se estar penetrando deveras num mundo muito pessoal, inalcançável para os demais. Tinha medo dessa perspectiva. Ele queria ser artista, ele era um artista. Ele escrevia.
Suas poesias e seus contos eram seus filhos adotivos, os amava muito. Mas a sensação de vazio o perseguia como sua sombra, sempre lhe faltava algo e isso o cansava.
Na religião, esse cansaço tendia a converte-se em entusiasmo. Não havia nele vocação para a descrença, mas nem sempre sabia em que acreditar. O mundo psíquico mesclava-se com o mundo do espírito. Ele via na fumaça e sua dança o símbolo capaz de unir o visível e o invisível, por isso se encantava com o incenso e o seu movimento. A fumaça dançava para ele com passos delicados, sutis até que sumia, transmutava-se em eterna expressão metafísica. Ali, no seu mais íntimo sentimento tudo se renovava, mas a profundidade tornava opaca a sensação de paz e a razão, sempre hodierna, voltava a tona e preenchia seu mundo com uma estranha premonição de que tudo permanecera inexoravelmente estático. Quaisquer discussões teológicas eram agora nada saudáveis.
A fé, grande legado de seus pais, agora precisava ser lapidada, podada para que produzisse frutos. Era um jogo entre sua razão e seu legado. Nada era como antes, mas ele não saberia dizer como as coisas deveriam ser.
Perplexidade. Sentimento de intolerância. Negação.Picos de alegria bruxuleante e tristeza miserável.
Os símbolos, os sentidos dados ao mundo por ele precisavam ser transformados, ele buscava incessantemente essa transmutação. Enquanto isso o mundo caminhava, o tempo, inexorável companheiro, apressava-o e o comprimia, dava-lhe um medo e uma perspectiva.

***

No bar à noite com os amigos sempre se alegrava e se entristecia. No bar tudo era movimento, dança. Acendeu um cigarro, olhou atentamente para a fumaça e a admirou.
As pessoas ao seu redor pareciam intrinsecamente complexas, mas pareciam não saber disso. Todos riam, comemoravam ele não sabia o quê. Debaixo da noite as pessoas ali vivendo alguma coisa como vidas, riam alguma coisa como sorrisos, dançavam alguma coisa como música e nutriam alguma coisa como felicidade. Ele realmente não buscava a felicidade naquele lugar, apenas tentava encontrar alguma conexão entre sua vida e as demais vidas ali no seu presente. Ele olhava para o público sorrindo no bar e olhava para o dono do bar que não sorria. Ele olhava os bêbados, os fumantes e toda sorte de ébrios, todos buscavam alguma coisa como felicidade. Tudo girava em torno da felicidade, e viu-se dependente dessa perspectiva. Admirou-se e frustrou-se. O cigarro queimara-se por completo, a fumaça o abandonara novamente.
Todos ali tinham sua própria filosofia, suas visões idiossincráticas. Em meio a elas o bar reinava, era ele o substrato, pano de fundo que gerava todos os acontecimentos e todos os enganos.
Ele se sentava com seus amigos e bebia e fumava e escutava e falava...Era esse o movimento da alma _ mas que alma meu Deus?
Ele talvez diria que essa alma fosse uma tentativa, pois, tinha vontade, mas a vontade não era entusiasmo.
Ele tinha consciência de tudo e de todos e por isso não tinha nada. Tudo parecia efêmero e ao mesmo tempo essencial. Não saberia nesse momento dizer se o problema era dele ou dos outros, mas havia um problema. Tudo era real demais e tudo era nada demais!
Ele ascendeu outro cigarro e vislumbrou a fumaça e o seu movimento.
Olhos atentos no balanço metafísico do invisível.
Prendia-se no mistério de suas visões.
Nada sobrava dessa fumaça.
Nada restava da dança.
Desintegrava-se.
Na música.
No nada.
Na vida.
Em si.
Só.
Rafael Guerreiro

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