terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

PROFISSÃO DE FÉ

Lançar mão de minhas idiossincrasias e pô-las todas no papel é tarefa que sempre me apetece. Talvez sejam apenas frutos de uma mente inquieta, incansavelmente inquieta e investigadora, talvez apenas demonstrem as entranhas de um inconsciente perturbado. Não há meios de se saber isso. O que sei é que nasci assim, com esse ímpeto de escritor opaco, sem referências nem similitudes.
Por vezes essa sina de escrever transtorna meu chão fatalmente concreto e estável. É que por de trás das letras começam a surgir toda sorte de impressões e sensações que trago em mim sobre o mundo que conheço. Seriam apenas conseqüências de não se ter um rumo a que seguir? Seriam espasmos de uma ansiedade latente e perturbadora? Deixo aos sábios as respostas de tais indagações. O fato é que nasci assim e me insiro na vida pela lógica escrita que teço.
Deixo igualmente aos sábios a tarefa de analisarem meu pudor lógico e textual. Prefiro ficar apenas com o escasso ímpeto natural de continuar esta saga escrita que narra minhas impressões, sensações, conclusões e erros sobre minha vida. Afinal, o que escrevo não poderia deixar de ser senão para que os outros lessem, pois ninguém ascende uma vela para pô-la debaixo da mesa, conforme o que posso extrair da Bíblia.
Digo apenas que venha o momento que vier, sejam os equívocos os que ocorrerem, mas trarei sempre em mim as sombras daqueles que passaram pela grande marcha e não se permitiram aquietar-se. Seja para concluir que o sertão está dentro da gente, seja para receber do anjo torto que vive nas sombras um destino sublime. Seja ainda, para me exilar em uma montanha mágica e me transfigurar ou ainda para arrancar do amor olhares de uma cigana oblíqua e dissimulada.
E digo que terei filhos e que transmitirei a eles o legado de minha miséria.

Rafael Guerreiro

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

DURANTE A CHUVA

Naqueles pingos de chuva que caiam, deslizava o verbo ser em cadências repetidas.
Chovia uma chuvinha fina, daquela que faz-nos prender a nós mesmos num estado de análise. No fundo, o motivo dessa melancolia era o tempo que teimava em passar tão rápido. Essa era a esfinge que consumia meus pensamentos.
Recuso-me a acompanhar o tempo, prefiro a quebra da cadência repetida das horas sem adjetivos. Debruço-me em déjà vus inesperados como quem procura advérbios para a alma.
Olho para o chão próximo do meu quarto. Vejo apenas as ondas que se formavam pela queda dos pingos d’água amontoados. Esse era o movimento que eu buscava, desordenado, caótico, sem referências.
A imagem onírica dos pingos que caíam, criava em mim a sensação de negar qualquer ordem artificial, qualquer tentativa ensandecida de regrar o presente em horários estabelecidos, em neuroses que me prendem num cárcere de grades invisíveis.
Fecho os olhos num momento sem fim, onde já não há mais o tempo nem o mundo contido em suas leis humanas. Escuto simplesmente os pingos d’água caindo, caóticos, livres, comunicando a mim o recado nítido de que amam o que são, porque são livres enquanto existem.

Rafael Guerreiro