segunda-feira, 26 de novembro de 2007

AGONIAS DO PARTO

Amigos, hoje tentei escrever, mas as palavras fugiam, as idéias esvaíam-se em lapsos cerebrais de sinapses mal-feitas. Tudo não passava de clichês eventuais, delírios passageiros que não traduziam mais que um simples déjá vu. E do insight, eu não conhecia mais que o nome.
Então resolvi escrever sobre o meu fracasso em tentar escrever algo. De alguma forma precisava compartilhar minhas limitações com os meus poucos leitores.
Gosto de escrever, mas as vezes é difícil. Não é falta de material, o cotidiano me fascina. Muitos de meus contos e crônicas saíram de pequenas notícias que li, ou de qualquer coisa muito insignificante que passava pelo dia. Um pássaro, um feriado, notícias no jornal, um homem que passeava de bicicleta fazendo vozes estranhas, como de menina, sei lá, tudo parece uma sopa rica de idéias. Mas às vezes, para meu desespero, de repente tudo se mostra pobre, estéril.
Crises de um espírito tão meu, tão único. E hoje eu o enganei.
Só consigo escrever quando estou feliz ou triste, mas nunca quando o desânimo se abate sobre mim. Mas hoje, pude perceber seu mecanismo e escrevo agora drogado pelo desânimo. É uma forma de negá-lo, de construir frases como quem constrói uma muralha de proteção, uma casamata. E a característica essencial que faz de uma casamata o que ela é, é justamente permitir o revide, o contra-ataque. E é isso que faço hoje, contra-ataco meu espírito, ou o desânimo que teima em se abater sobre ele.
Resisto e minhas idéias dão à luz. Por hoje não me calarei, mas antes trarei ao público expressões que talvez nunca tivessem nascido se o parto fosse interrompido.
Nunca o “backspace” trabalhou tanto! Parece irônico, mas prossigo.
(Pausa, preciso pensar!)
Estou de volta e retomo meu assunto. Construí uma casamata. E anuncio ao mundo um pequeno parto, feio e brilhante. O que veio dali está banhado em sangue, mas é gente. Mal andou e já começou a apanhar, mas é forte, agüenta.
Mesmo que não sejam palavras de um Hemingway, ou Dostoiévsky, Drummond ou Vinícius, ainda são as minhas, idiossincrasia plena de um pobre único.
Então era verdade! Sabia que não seria em vão escrever. Lembrei-me de uma nobre lição que em muito se aplica ao dia de hoje. Certa vez Vinícius me intimou, assim como fez com tantos. Disse: “Vamos, escreve, ó mascarado! Escreve uma crônica sobre esta cadeira que está aí em tua frente! E que ela seja bem-feita e divirta os leitores.” Pois bem, hoje escrevo sobre minha casamata, e que minhas palavras sejam vivas e não soçobrem antes do parto.

Rafael Guerreiro

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

ENQUANTO UM CHORAR...

"...a morte de qualquer homem diminui a mim, porque na humanidade me encontro envolvido..."
in Meditação 17, John Donne

Enquanto um chorar, toda consciência é pesada, todo mar é agitado e não há abrigo nos corações. Enquanto um chorar, meus sonhos não passam de silhuetas de um paradoxo e meus sentimentos se transfiguram em simulacros de idéias vazias.
Não há meios de banir a tristeza, não há formas de evitar o derradeiro encontro consigo mesmo, onde no íntimo imago a imagem do irmão brota triste. Somos irmãos e, enquanto um chorar, não desejo o calor dos sorrisos. Somos irmãos e cada pessoa é parte de mim. Cada universo, cada consciência discreta, frágil, deseja a felicidade dos sorrisos simples e dos apertos de mão. Enquanto um chorar, um vento fúnebre deixa um ranço de morte.
Dobram-se os sinos, afirmou John Donne. E é por nós que eles dobram, por cada perda, por cada instante em que nos diminuímos.
Em cada sofrimento que desprezamos, em cada irmão que ignoramos, entre os sinos dobrados, um réquiem é composto.
Ouve-se o réquiem a cada instante, composto de notas amargas de orgulho e soberba. Na imagem do mendigo ele é encontrado. Pelos hospitais e seus doentes terminais pode-se ouvi-lo. No centro e na periferia já o deram como certo. Nas igrejas também o perscrutam, entre um e outro cântico de louvor.
Dia a dia ele nos acompanha, sempre que negamos uns aos outros. Caminha conosco desde os tempos imemoriais, em cada guerra, em cada morte. Não o rejeitamos, somos seus filhos adotivos, do réquiem e dos sinos, pois não há paz, quebram até as flores*.


Rafael Guerreiro

*Filha de Henrique Dussel, com 7 anos de idade.

domingo, 4 de novembro de 2007

DIATRIBE


Era Finados e o cemitério estava concorrido. É tradição em minha família que visitemos os nossos mortos nesta época do ano. Neste feriado decidi que iria sozinho.
Comprei um vasinho de flores e fui ter com os mortos. Pelo caminho pude perceber as pessoas rezando em frente aos túmulos dos extintos parentes seus. Uns rezavam, outro se ocupavam de limpar os túmulos, outros ainda apenas choravam transbordando uma tristezinha antiga, daquelas que nunca se extinguirão.
Quando cheguei ao túmulo dos meus avós, ali rezei. Depositei o vasinho de flores que comprei para eles e rezei com a cabeça baixa. Uma tristezinha daquelas se abateu sobre mim e de súbito chorei. É uma sensação hipnótica, por onde o presente se desfaz em pétalas de solidão e resignação. As lembranças de todos voltam a me visitar e o presente parece ceder espaço ao passado já consumado. Lembro-me agora das festas, das histórias contadas em tons fantásticos, da sensação de acolhimento, mas também das brigas e das palavras ásperas. São fatos que jamais voltarão, exceto pelas lembranças que morrerão comigo.
Curiosamente, a saudade que carrego por todos os que já partiram suscitou em mim a vontade de querer resolver todas as diferenças que possuo com os meus próximos. Em mim se criou um anseio de resolver as questões pendentes, de pedir perdão pelos erros passados, de poder amar e guardar sempre mais e mais das boas memórias.
Era uma sensação que me preencheu por alguns instantes, até que um singelo bem-te-vi pousou sobre a cruz do túmulo. Era um bem-te-vi já velho, trazia consigo um ranço de morte, possuía a penugem esfacelada e trazia em uma das patinhas uma ferida que o impedia de firmar as duas no chão.
O bem-te-vi pousou em cima da cruz e ficou diante de mim. Enquanto descansava, suspendia a pata machucada, mas não alçava vôo, ficou parado diante de mim. Enxuguei minhas parcas lágrimas e comecei a observá-lo. De súbito, uma angústia se abateu sobre mim. Era vontade de ajudar aquele passarinho, de lhe curar a patinha. Mas eu sabia que se me movesse ele se espantaria e voaria para longe, e a sensação de impotência me fez mais triste.
Foi quando o velho passarinho profetizou a meu respeito:
“Minha pata dói, mas não te conheço. Prefiro a amargura da dor e da falta de liberdade que a ajuda proveniente de estranhos capazes de me matar.
Entre nós há um abismo insuperável, por onde a comunicação não se dá. Sei que sofro e que preciso de ajuda, mas é inútil qualquer tentativa de aproximação. Nossas espécies são diferentes, somos seres diferentes e jamais nos entenderemos.
Estava escrito que entre nós seria assim, portanto, não se aflija comigo. Eu morrerei seguindo meu curso natural.
Mas assim não deveria ser entre vocês, humanos, irmãos de mesma língua e afeto. Entre vocês a comunicação também é difícil, e alguns se dão ao luxo de morrer sem amar e se deixar amar. Entre você e eu há um abismo, mas entre você e seu próximo deveria haver uma ponte mágica, não a destrua.
Às vezes se tenta, mas não se encontra formas de romper a barreira com o próximo, ele está fechado e não ouvirá. Então não há diálogo e tudo se rompe em profundas amarguras. Mas saiba que os outros também tentarão e você também frustrará tentativas de amor.”
E o velho passarinho voou. Quando voltei a mim, senti que era hora de ir embora. O tempo urge e há muito que ser feito antes do final.

Rafael Guerreiro