terça-feira, 14 de maio de 2013

PUNHAIS E PICANHAS


O que me estraga é essa tal ironia. Não que isso seja um defeito, mas ainda assim acaba por ser indigesto, ou cômico, a depender de quem observa.
Ser irônico é como amolar um punhal, de um lado sarcasmo e do outro perspicácia. O problema é que as vezes acabo por cortar a carne usando sarcasmo quando deveria usar o outro lado e vice versa.
Eu poderia fazer picanhas com coxão duro, mas elas deixariam em minha língua um ranço de pobreza de espírito e então prefiro me abster deste mistifório.
E no final, acabo por dar aquele sorrisinho de canto de boca, como quem gosta do mal feito e sigo a terminar o dia acomodado na fumaça de um cigarro assistindo a banda passar...
Não pensem os senhores que tal predileção me é própria. É apenas o gosto do tempo.

Rafael Guerreiro

domingo, 21 de abril de 2013

NOS BASTIDORES DA MENTIRA


Há várias modalidades de pessoas mentirosas. Mas a pior delas é aquela que acredita na mentira que está contando. Traiçoeira e dissimulada, nutre suas mentiras com tanta convicção que chega a mesclar sua realidade com o seu mundo de ficções, criando assim uma terceira via nos moldes de seus interesses mais obscuros.
Há que se ter muita cautela com pessoas assim, porque não é difícil que ela faça a sua imagem descansar aos cuidados do chão. Também não custa muito e pessoas de um determinado círculo passarão a lançar contra você um olhar aterrorizador, porque ao destilar a mentira o mentiroso acrescenta em seu tubo de ensaio o melhor de si e extrai em seu erlenmeyer o pior da vítima, criando assim um Frankenstein argumentativo nada salutar para quem sofre o processo.   
Imagens de outrora, gestos e hábitos ou até mesmo objetivos declarados, tudo entra na dança e serve ao mentiroso como matéria prima de suas alucinações, demonstrando que entre ele e as informações de que se utiliza há tão somente uma relação parasita.
Pouco importam os antigos laços, pouco importa a opinião alheia. Tudo deve servir ao propósito maior de exaltar a realidade que o mentiroso necessita fazer existir, porque se do contrário for, ele mesmo não existe e assim o seu mundo particular perde qualquer sentido. Daí a necessidade de expor a mentira, sua obra prima, para que todos a vejam, para que todos lancem seu aval tácito e assim coroarem o mentiroso com gestos de aprovação e moções de apoio.
Diante de um veneno tão bem inoculado, por vezes a vítima acaba por não saber o que fazer e comete o erro de tentar retrucar a mentira. Ledo engano...Mal sabe ela que assim a encrenca se amplia. Há certas situações que demandam tão somente o silêncio. Impassível, no primeiro tempo se mostra fraco e impotente, mas quando aplicado de forma determinada, revela-se a contraface que escancara as ânsias do mentiroso, fazendo-o se recolher, ao final, à insignificância de suas opiniões maquiadas.

Rafael Guerreiro 

domingo, 30 de dezembro de 2012

IRMÃ DAS ALMAS


Ela se achega com sua cadeira espaçosa e se põe no meio da gente e nem pede licença.
Vem escondida no dia-a-dia, na cadeira de sol e no banco da praça, no espelho e nas escovas de dente. Vem por si mesma diluída naquilo que ousamos chamar de razão, no senso nada bom criado a troco de nada.
E todo mundo tem um pouco dela como semente. Nada lhe foge aos ouvidos, não há nada capaz de recusar seu autógrafo. No seio da gente ela brotou, como uma irmã gêmea, tão nossa quanto nós mesmos, e se de um lado a razão que criamos parece nos indicar o caminho, por ela brota a dúvida e a certeza num mesmo cálice doce e amargo no qual bebemos do cotidiano alucinado de tantos argumentos toscos quanto nossa imaginação pode criar.
É um disparate, mas é nós mesmos, oras bolas. É ela quem negamos, mas que desejamos assim tão forte nos sonhos, como orates que somos.
Pois é, se de um lado a razão nos beatifica, por outro, a loucura, companheira nossa, trata de calcificar a vida, mesclando sonhos com cimento e ilusões com lágrimas aqui mesmo dentro da gente, de onde brota o sorriso e o choro, tão nossos quanto é a nossa capacidade de chorar quando queremos rir e rir quando queremos chorar. 

Rafael Guerreiro

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

EVENTO COTIDIANO

Neste final de semana algo inusitado ocorreu comigo em uma das minhas diligências. Fui chamado às pressas pelo Diretor do cartório em que trabalho para "tapar um buraco" deixado por outra oficiala de justiça que simplesmente desapareceu no dia de seu plantão judicial. Tratava-se o caso de uma cautelar de separação de corpos. O "burro" aqui acabou atendendo o telefone e terminou o sabadão dando uma de exorcista do TJ, porque tive que tirar de dentro de casa uma assombração que gosta de bater em mulheres. Pois bem, de posse do mandado, me dirigi ao endereço indicado a fim de exorci...ops!, cumprir a medida cautelar. Chegando ao local, fui recebido justamente pelo réu, que naquela ocasião me tratou muito bem, inclusive, ofereceu até cafezinho! Com muita educação e respeito, disse a ele o teor do mandado, informando-o de todas as suas consequências. O réu não se assustou, pelo contrário, até deu risadas porque disse que sua ex-amásia já não morava naquele local. Disse ainda que já estava até de namorada nova!!! Pedi a ele que informasse o novo endereço da autora para que eu a encontrasse, o que prontamente foi atendido. Assim, me dirigi ao novo endereço da autora acreditando que faria tão somente a intimação da data da audiência e pronto, mais um mandadinho pro balaio!!! Foi quando ela manifestou a mim o desejo de regressar ao seu antigo lar. Pois bem, voltei juntamente com ela ao endereço do réu e, estando lá, informei a ele da necessidade agora de se retirar do lar imediatamente. Antes, contudo, tratei de amenizar seu psicológico, dizendo que aquela medida era ordem emanada do juiz e que eu não tinha qualquer interesse em vê-lo desinstalado de sua moradia. O rapaz recebeu a notícia de cabeça baixa e face estanque, sem manifestar qualquer emoção. Foi quando, de súbito, disse que não sairia do local e pronto. Disse a ele então que eu seria obrigado a chamar a polícia e que tal atitude lhe causaria sérios problemas futuros...Diante do que falei, ele simplesmente disse então que antes de sair iria quebrar a casa toda e lançou mão de um pedaço de madeira. Naquele momento, achei que o cara iria me partir no meio, mas ele entrou na casa e pôs-se a destruí-la em fúria incontrolável. Comecei a ligar pra polícia pelo número 190, mas fantasticamente eles não atendiam o telefone. Enquanto isso, o cara destruía a casa da autora e gritava todo tipo de injúrias lá de dentro. A situação era surreal, o cara quebrando tudo, a mulher chorando desesperada do meu lado e a polícia não atendia o telefone...Eu já tinha saído de perto e, inclusive, até mudei o meu carro de lugar rsrs! Foi quando o cara simplesmente cansou de praticar basebol com os vasos de sua ex-amásia e resolveu pegar seus parcos bens: uma TV velha, e pelo que vi, 2 pares de meia, uma calça surrada e 2 pares de sapato. Ao sair, após xingar seu desafeto por quase 5 minutos ininterruptos, olhou para mim e disse que não era nada comigo, pediu até desculpas. E saiu com seu carro como se nada tivesse acontecido...Complicado, não acham? Depois dessa, e com um calor de 35 graus, só mesmo tomando uma gelada pra esfriar o sangue...

terça-feira, 10 de abril de 2012

EU SEI QUE É ELA

É ela quem chega assim sorrindo e rouba a cena dos meus olhares com mãos leves de carinho.
É ela quem ganha do acaso e faz de seus passos um encontro marcado.
É ela quem improvisa e dança e canta no relance do talento. É ela quem diz o som do barzinho, com sua voz suave, pareando olhares de amor e rímel.
No silêncio do quarto, quando a penumbra entorpece os olhos e as mãos desejam pele, é ela quem sorri tranquila, fechando os olhos e abrindo alas para os sonhos, com seu sorriso assim tão cálido.
Dentro da noite nua, só pode ser ela quem agora me faz dar sossego à lua, porque já não lhe canto mais pedidos de amor, nem desejo o futuro na fumaça de um cigarro solitário.
E quando ela diz que me ama, eu corro a recortar o momento e o guardo no álbum das lembranças, fora do tempo, com todo o romance de um retrato em branco e preto. 

Rafael Guerreiro

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

A PORTA FECHADA

O velho novo de novo. Por uma vez mais o dia nasceu brilhante após o ocaso trivial dos desafortunados. Por uma vez mais os pensamentos parecem viciados, focados nessa esperança perplexa de algum amor casuístico.
Mais uma vez, o acaso me trouxe uma nova complicação. Tudo estava quieto, estático. Os dias eram até então serenos dentro das suas próprias limitações mesquinhas. Mas agora tudo me parece o imperativo do verbo sofrer transmutado numa ansiedade obesa.
Queria eu controlar o acaso, esse mistério de voz alta e roca, esse penetra estúpido de língua estrangeira. Mas já que não o controlo, queria eu então prever o futuro para que a luta fosse justa. Pudesse eu prever o futuro e todas as peripécias do acaso poderiam ser curadas se eu já soubesse as manchetes do jornal de amanhã.
Seria justo, e melhor, não seria tão sarcástico esse gosto diabólico do acaso por aguçar as nossas paixões.
Mas por outro lado, o acaso poderia ser justo, mesmo sem previsões, se ambos os lados de um mesmo amor entendessem que um encontro casual seria o menos casual em suas vidas.
Por de trás de todo esse mistério sem previsões, tudo o que sei é que não é possível saber nada do que está de fora da porta do quarto ainda fechada numa manhã comum.
Eu acordo nessa manhã ensolarada e comum. E diante de mim há a porta do quarto ainda fechada, esperando para ser aberta, esperando que eu a abra e assim possam começar todos os desejos do dia.
A porta espera pacientemente. Ela não me diz nada e nem poderia. Ela não me convida, não me questiona. Apenas está ali como um ritual de passagem que me levará ao inevitável encontro com o acaso.
Seguro a maçaneta e a giro com vontade, como quem gira a sua própria roda cotidiana. Preciso de um novo dia, de um novo sonho. E naquela maçaneta eu deposito todas as paixões que o dia pode conter.
A porta se abre e eu não posso saber o que virá, tudo o que sei é que o velho novo sentimento de sempre me faz caminhar enquanto ainda respiro. Tudo o que sei é que por mais este dia comum algo de novo despertará em mim o desejo por sentir novamente aquela doce expressão de um sentimento nobre.
Eu a desejo inexoravelmente, e ao girar aquela maçaneta diária faço a escolha por desejá-la, mesmo sabendo que o mesmo acaso que me levou a estar tão próximo daquele velho novo amor, pode não ser tão forte quanto a certeza que me fará tão próximo daquele velho novo verbo sofrer.  

Rafael Guerreiro

terça-feira, 26 de julho de 2011

RETALHOS DO ACASO

Quais segredos guarda uma paixão de três dias? Talvez nenhum, mas talvez exista nesta singularidade volátil a possibilidade de um engano feliz, de um prazer único, sem medições temporais.
Quanta filosofia pode ser pensada na fumaça de um cigarro! E no microcosmos moral de cada verdade errante que perambula por este universo indiferente, lanço minha descrença sobre qualquer idealismo.


Sim, eu que sempre me aturdi por razões soberanas, silhuetas da eternidade e visões metafísicas dos porquês e das tradições, sim, eu deito por terra qualquer sentido, qualquer nobre destino, qualquer ousadia sobre transcrever o indizível.
No aconchego de minhas palavras, percebo que a única resposta ao absurdo de Camus é nossa indescritível e indecifrável capacidade de amar.  
Amor. Mas que palavra é essa, meu Deus? O que entende o outro sobre o que amo ou como amo? Não sei, tudo o que sei é que amamos despidos de qualquer ciência.
Por isso, aprendo com o acaso. Dou-lhe crédito e fé. E na construção diária do que chamo minha vida, primeiramente devo ao acaso o cimento que assenta cada tijolo dos muros erguidos a cada escolha que faço com meus passos cegos de eternidade. E sigo amando por estes retalhos de mar e por estas ilhas de felicidade.

Rafael Guerreiro

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Eternal Sunshine of the Spotless Mind

Eu já havia assistido ao "Brilho Eterno" há alguns anos atrás. Mas da mesma forma que um bom livro, um bom filme sempre apresenta uma segunda perspectiva quando assistido pela segunda ou terceira vez. E não foi diferente com este filme.A primeira vez que o assisti, o Brilho passou um tanto despercebido. Talvez eu não havia ainda me dado conta de como algumas lembranças se mesclam a nós mesmos e se tornam parte de nossa história, de nosso próprio ser.
"Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças" é um filme avassalador e sua genialidade é diluída no cotidiano simples e comum de um casal de namorados  apaixonado e que sofre as sutilezas do amor da mesma forma como qualquer um de nós, expectadores.
Mesmo que um relacionamento acabe, restam lembranças tão caras que jamais se perderão. São marcas e estão em nós como tatuagem em nossa pele.
Após assistir ao filme, fiquei o resto do dia pensando sobre as sensações que senti enquanto o personagem de Jim Carrey sofria as angústias de saber que parte de sua história era apagada de sua memória sem que nada pudesse ser feito.
Senti angústia e tristeza.
Fiquei angustiado porque há em mim lembranças tão caras que se fossem apagadas fariam de mim um ser humano menor, menos vivido. E me peguei triste porque se algumas dessas lembranças que guardo de forma tão cuidadosa fossem deletadas de minha história, eu perderia a única forma que tenho de reviver momentos e sensações que jamais se repetirão. É um pedacinho de alguém que ainda resta em mim, mesmo que esta pessoa esteja longe ou apenas trilhando seus caminhos por outros rumos que não os meus.
E quando se trata de amor e carinho, tudo fica ainda mais complexo. Guardar estas lembranças, às vezes tão pequeninas, me ajuda a perceber a singularidade de cada pessoa, com seus sorrisos e lágrimas, seus gestos e seus perfumes muito raros, os quais guardo em frascos pequenos, caros, exóticos.

Rafael Guerreiro

terça-feira, 5 de abril de 2011

Para Ti, garota!


Tu, garota, que estás aí do outro lado, de olhos negros perdidos em mar aberto, contemplativa, esperando por alguém que lhe seduza não só o corpo, mas também os sonhos.
Tu, que és livre, solitária, portadora dessa tristeza tão cálida, tão marcantemente tua e que adoravelmente Vinícius cantaria em Itapuã.
Deixo a ti, garota, o que de mais caro possuo. Deixo-te a terceira margem de meus versos. Deixo aos teus sabores toda lógica, todas as interpretações que se podem fazem.
E despido de qualquer axioma, procuro em teus olhos marejados de mar um instante de conforto, qualquer razão que me permita penetrar-lhe o semblante, essa alma que tu tens e que tanto me comove.
Por que olhais o mar dessa forma, garota linda? O que procuras no mar e desprezas tanto assim na terra? Qual é essa força inexorável contida nos teus olhos de sonhos e brilhos e que tanto me força a engastar as palavras?
Veja, garota, veja! Recebe minhas margens e as transponha com teus olhos infinitos. Quebre-as em outras mil paragens, outras tantas formas de amar.
Tu que estás aí tão longe e que sente o perfume dourado do sol, recebe este presente, garota, recebe minhas margens, este porto tão singelo, doce alento ao final de teus tormentos tão serenos.

Rafael Guerreiro

Minhas Filhas


Já não sei mais o que escrevo. Já não sei mais se é crônica, conto ou poema.
Tudo o que sei é que o mundo todo quer seu espaço no branco do papel.
E depois de tanto tempo sem escrever, percebo hoje como está difícil deixar que as ideias sejam livres.
Sim, depois de tanto tempo. Tanta coisa passou, quantas pessoas passaram, quanto sentimento foi e voltou. Sorrisos, choro, angústia, raiva, alegria, felicidade e tristeza, amor e ódio, antagonias do Alentejo.
Ah! Meu Deus, quantas ideias se perderam para sempre, quantos abortos sem nenhuma chance.
Queria eu podê-las reunir em uma mesa com a família e passar um momento calado enquanto todos riem a vida sem qualquer maldade.
E calado eu as deixaria ao sabor do vento dançando para mim. Elas seriam eu, um eu mais eu que eu mesmo, no silêncio do que se passa dentro dos olhares.
Eu, somente eu, sem vaidades nem trajes.

 
Rafael Guerreiro

domingo, 16 de janeiro de 2011

Apenas para não passar em branco...

Ai, ai...Hoje, após a costumeira missa dominical, resolvi passar pelo calçadão quando, de súbito, avistei o Claudeci, minha vítima de hoje. Jogamos e, bem, antes que eu desse o derradeiro mate, o Clau disse q precisava comprar cigarros e saiu sorrateiramente, sem meias palavras...

Rafinha Capa Blanca

sexta-feira, 3 de julho de 2009

OSSOS DO OFÍCIO

O cidadão chegou ao bar procurando um remédio. Pediu um "rabo de galo" e o bebeu num gole fundo. Sarou das tragédias.
Pediu também um mastigo de ontem e comeu ensalivando a boca.
O cidadão não se importava com mais nada. Vencido o dia, pôs língua para a vida porque naquela hora, e só naquela, sagrava-se rei de um momento de fartura.
Deixou o pranto das horas para depois e tascou nos lábios um sorriso aberto, palestrando e rindo para todos, mesmo que os outros não rissem tanto.
O cidadão era coveiro e já enterrou mais finados do que podia suportar. Seus clientes são os mais impacientes, não aceitam espera. Se o coveiro não lhes atende rápido, logo se derretem de tanto incômodo, sem cerimônias.
Era essa a sua profissão e segurou a vida no cabo de uma pá de cal sem deixar ninguém esperando. E pelas suas mãos, muitos descansaram em paz na certeza de um túmulo hermético.
O coveiro trabalhou muito, fez muitos enterros. A cal já havia lhe cortado a carne como navalha e o cheiro das carneiras cheias e apodrecidas e das flores fúnebres há muito lhe estragou as narinas.
Suportou ainda as lágrimas de tantos corações partidos e desolados despedindo-se dos seus pela última vez. E viu que, diante da morte, de nada adiantavam os lamentos.
E de brinde, sem esforços, há tempos havia decorado as exéquias.
Assim, depois de tantos enterros, chegou ao bar procurando um remédio. Queria esquecê-los, assim como as choradeiras. Queria, ao menos por um dia, esquecer os semblantes fechados que encontrava pelos dias de profissão.
Ficou de tal forma ensandecido que sua vontade era mais de caçoar dos defuntos, chamar-lhes apresuntados, medir-lhes a febre, pintar-lhes o rosto com caretas ou até mesmo fazer piadas com seus nomes diante de suas famílias; qualquer coisa capaz de quebrar o clima fúnebre dos dias de profissão.
Mas não tem jeito. Dia após dia, impacientes, os defuntos o esperaram, desejando que lhes arrume a cama e bem rápido.
Não adianta o coveiro lhes tratar com ironia. Seus olhos cerrados não enxergam nada, não participam da brincadeira, tampouco possuem senso de humor e o coveiro terminaria por rir sozinho.
E depois de pensar em tudo isso, já risonho de tanto remédio, o coveiro suspirou num desalento incomodado e lançou um pensamento alto, divagando consigo mesmo em tom resignado:
- Ossos do ofício!

Rafael Guerreiro

segunda-feira, 22 de junho de 2009

AMOSTRA GRÁTIS

Defronte ao bar onde eu estava há um salão de cabeleireiros com uma enorme janela de vidro para a rua. Uma garotinha contando seus 10 anos veio lá de dentro, parou diante da janela e começou a me olhar.
Apesar de traquinas, já trazia consigo uma das armas femininas: saber lançar olhares como punhais. É bem verdade que os dela ainda não passam de meros canivetes cegos, mas capazes de ferir seus pares!
Olhava-me numa altivez cômica, como se o mundo fosse ela. E quando percebeu minha indiferença, apelou para as caretas! Queria chamar minha atenção.
Brincou, brincou, brincou....Se lambrecou toda com a minha imagem, e quando se satisfez deu de ombros como quem se garante e se virou leve, despedindo-se com um andar solene mal ensaiado, forçando o salto do sapatinho.
Quando sumia, teve tempo ainda de se virar novamente e me espreitar de rabo de olho, numa inocência que qualquer mulher vivida já perdeu.
Eis uma amostra do futuro...

Rafael Guerreiro

segunda-feira, 23 de março de 2009

SOBRE SONHOS E FOICES

Zé Francisco cruzou aquelas terras com os olhos nos pés. Queria enricar ligeiro, mas foi esmagado pelas contas do patrão.
Era moço opinioso, de visão rija, embora carecesse de instrumentalidades. Escutou o latifundiário enquanto esperava a própria fala contida em lábios trêmulos. Mas faltava-lhe massa no estômago e, por isso, aceitou calado as migalhas do dono da terra.
Calou-se e esqueceu as palavras do seu ensaio, por onde desejava o justo e que jamais foram ditas e ouvidas.
Zé Francisco arou e lavrou aqueles acres, não era de reclame. Não abriu a boca durante o susto da labuta. Não endireitou a espinha sem antes tê-la sentido arder no ângulo agudo.
Cumprido o suplício ensolarado, largou a foice suja, engoliu água morna e fez caminho até a cidade em busca do primeiro sorriso do dia.
Parou diante da madrugada iluminada e bebeu e fumou extasiado, como quem comemorava um repente único. Mas sua alegria trazida num momento seco consumou-se num relance espraiado de sinestesias voláteis. E de sua felicidade fugaz restaram no balcão apenas copos sujos e a imagem de sua fronte ancorada nos braços.
Zé Francisco até tentou, mas quando o dinheiro acabou ninguém pagou pelos seus sorrisos.
E também ele não carecia de clemência. Era moço opinioso, não tinha precisão de esmolas alheias. Se não trabalhou não podia ter, e se algum dia teve já se foi.
Não pediu piedade, não fez palestra como já fizeram outros. Reverberou-se, bateu no peito e saiu na noite maldizendo Belzebu.
Caminhou titubeante naquele escuro de poemas até sentar-se e curvar-se na sarjeta de um espaço hostil.
Calado e sem nome, chorou um choro rangido de desespero, de solidão. E seu rosto pariu uma imolação sem sangue, uma prece que lhe trouxesse um viático para o futuro.
Lembrou-se então das palavras ensaiadas e do porquê de não dizê-las. Lembrou-se das dores e da humilhação, da água morna ao fim do dia. Foi quando seu olhar resignou-se num colapso de sonho e descrença.
Era moço opinioso, mas que tombou com o roçado seco. Havia esquecido o sonho com a foice.
E na cidade escura, no silêncio dos algozes, Zé Francisco ensaiou palavras novas, mas que dessa vez foram ditas e ouvidas claramente numa rezinha triste de conforto suave, entre pai e filho, entre um sofrer e um sonhar.

Rafael Guerreiro

sábado, 21 de fevereiro de 2009

O ESTRANGEIRO

O estrangeiro dormiu uma noite sem instrução. Acordou no crepúsculo de um dia roxo e partiu soletrando passos sem nenhum caminho.
O sol ardia-lhe nos olhos sem qualquer licença e sua obstinação feria-lhe os pés.
Caminhou e saiu da cidade inóspita. Tomou rumo sacro e fez estrada a cada passo. Levou consigo apenas o espírito dos nômades e a paga de um jugo eterno.
No olhar sisudo não se encontravam querências, o ardor sobrepujado que sentia n’alma eram cicatrizes de sentimentos inacabados.
O estrangeiro havia perdido sua pátria, seus antepassados restavam num passado distante e se exilou diante do destino que carregava. Então fez marcha firme e partiu procurando paragens distantes, onde pudesse ser batizado para ser aceito no círculo de fogo de sua tribo.
E no ocaso daquele dia roxo, após longa marcha, quando já lhe faltaram pernas, deitou na relva simples, no aconchego da penumbra, e procurou afastar as aflições de sua alma.
Mas a tribo da qual fazia parte também deitou com ele. Também deitaram seus antepassados, vindos do círculo de fogo.
Deitou, mas não adormeceu. Admirava as constelações numa linguagem muito própria, perdido em devaneios anímicos. Sabia-se pequeno, portador de uma sina lancinante, marcado por um destino não querido, não construído. E desejou um pedido antológico, buscando um batismo de retorno.
Seu rosto sulcado de sol e lágrimas deixou transparecer por instantes um corte de amor, um desvio no olhar, um refugo no peito aberto, um pender de cãs maduras.
Enquanto jazia naquele estado hipnagógico, entre a vigília e o torpor, o vento soprava forte na madrugada nua. E quando seu coração restava nas sombras, ouviram-se passos deitando a relva simples e sussurros de vozes veladas.
As aparições aproximaram-se do estrangeiro, se curvaram até sua nudez e tocaram-lhe a fronte. Variações corriam-lhe a espinha, mas ele se sentiu reconfortado na presença quente daqueles que vinham do círculo de fogo.
Não desejava abrir os olhos, apaixonou-se pelo momento. Voltava naquele instante ao útero perdido e quando se deu conta chorou copiosamente.
Mas naquela relva, durante a roda da madrugada, onde não havia luzes nem civilização, o estrangeiro não foi levado pelos ígneos. Não ainda.
Puseram-lhe no peito uma epifania, uma marca serrada e selaram seu destino com ardores de fogo. Quebraram-lhe a maldição da saudade e da solidão, e libertaram seu coração para a vida.
No batismo de fogo, a plenitude pairou nos olhos do estrangeiro. No batismo de fogo, um conforto súbito ressoou no sangue quente, e uma rara sensação de completude profetizou dias claros de amor.

Rafael Guerreiro

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

DORES DE UM NOVO MUNDO

Não fiz palestra. Deitei ordem triste embaixo de raios de um sol ardido. Segurei o soluço num fluxo inverso e recitei um réquiem.
Mantive rumo certo sem desvio no olhar. Não olhei para trás. Era uma ilha desbravada que se perdia no ocaso.
Entre tremores tramou-se um trilho trépido de olhares marejados. Fiz pressa num caminho de momento, não podia permanecer ali, o tempo urge inóspito. A roda girou mais uma vez e num estalo gerou um passado sem precisão.
Dessa vez não houve gritos, cabeças baixas impediram revoltas. Consumado o presente, deitei passos largos e titubeados, sem vontade, mas com coragem e parti para a outra margem.
Deixei na ilha, a pedidos feitos em língua clara, todos os pertences que um dia foram meus por sentimento.
A correnteza pariu em mim dores e vicissitudes, mas criou de forma esquizofrênica uma tatuagem vermelha, de sangue rubro, de sangue apenas.
Esqueci casa, cartas, presentes e sentidos, parti rápido e sem memória para terras estrangeiras. Na correnteza, foi-se aos poucos esfarelando qualquer memória da ilha, que aos poucos ficava submersa na maré que a deglutia.
Ainda no mar, percebi que a ilha sumiu. Nada resiste ao encontro das águas.
Deixei para os escafandristas a missão de um dia encontrar casa, cartas e sentidos. Bati braçadas rumo a terras estrangeiras.




Rafael Guerreiro

domingo, 8 de fevereiro de 2009

O FIM DAS TORRES DE MARFIM

Era noite alta e ainda assim não havia silêncio. Os brados de altos escalões ressonavam em tímpanos cansados. Era noite e ainda assim não havia amor.
Na cilada da História, das provas e das palavras, era ainda difícil perscrutar os motivos de tanta raiva. Tanta desconfiança emanada de pulsões freudianas e hormônios sinestésicos.
Na cadência das horas, dos minutos e dos olhares, surgiam afoitas investidas selvagens nas falhas dos argumentos, lançadas contra a sorte alheia. Eram tapas fonêmicos, símbolos quase líricos, não fosse o anti-clímax inerente.
Na noite aberta, restavam incólumes as duas torres de marfim herméticas, duas celebridades cômicas, baseadas na desconfiança recíproca.
As torres se digladiavam com armas ilusórias, buscavam ofuscar o marfim hermético uma da outra. Não toleravam o brilho alheio, e por isso lançavam cuspes uma na outra. Não se toleram e os que sobravam ao redor, com um olhar de baixo pra cima, podiam ver e ouvir as armas usadas, puras desconexões fora de contexto, palavras sem reflexão, empoeiradas pela falta de pudor e sensibilidade.
Ao final, após uma cruzada sem Cristo, uma das torres parou, rachada, infiltrada de sulcos no marfim antes alvo.
Com o cerne rachado, sem estrutura, sem pilares, sem estacas e fundamentações, era hora de implodir-se. Desmoronou num vazio insólito de agruras e tártaros, enquanto era observada pela outra torre também ferida.
E a torre que se julgava a mais alva, a mais elevada, com fundamentos mais sólidos, com estacas mais fundas, palavras mais certeiras e ideias sublimes, foi justamente esta que se implodiu da mesma forma, não por corrosões, não por ferimentos, mas sim porque seu marfim avermelhou-se na poeira deixada pela outra. E sua razão perdeu qualquer sentido, pois, já não era alva o suficiente para ser marfim. Sua estrutura, então, lascou-lhe a vida em grossos volumes que caiam por terra desintegrando-a em nada mais que sombras.
A dor da torre mais alta não era perceptível, não era física, era apenas clara consequência de que qualquer brancura, quando na guerra, se avermelha no sangue alheio.


Rafael Guerreiro

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

EPIFANIA SEM VERSOS

No começo, não havia símbolos. Eram apenas certezas universais entre sorrisos.
No começo, um olhar dizia mais que quaisquer palavras, quaisquer atos de amor eram decodificados num sistema invisível, conhecido apenas bilateralmente, por aqueles que amam.
A mágica dos toques e afagos lançava certezas que não desejavam qualquer explicação. Não procuravam as origens dos seus sentimentos. Eram feitos de matéria brilhante, de algo etéreo sem qualquer identificação.
A linguagem do passar das horas era oculta, distinta, alquímica, capaz de acelerar e desacelerar o tempo na cadência que desejassem. Não havia símbolos, não havia linguagem capaz daquela afinidade tão certa e completa. Não havia, portanto, palavras. Eles menosprezavam as palavras, repudiavam suas letras, seus significados. O tato jazia como intérprete universal do amor. O contato, assim, tornava-se próximo, desnudo e sem manobras lógicas, sintáticas.
Essa linguagem de gestos perdurava na noite aberta como um manifesto silencioso. Os seres de símbolos rejeitavam qualquer lógica, qualquer racionalização do momento que sorviam. Por isso, os hemisférios se entrelaçavam sem qualquer pudor. E seus corpos ganhavam significado na medida em que se lançavam na alteridade desconhecida.
No mais, o que viviam não se torna visível nas letras. Não há sequer formas narrativas que se abeirem de relatar aquele momento holístico. E pouco se importavam. Desejam mais perderem-se mutuamente num momento impronunciável.
Naquele universo intangível, um simples olhar serrado deixava de graça mais reflexos que palavras somadas em versos lapidados.
Naquele universo, em seu princípio, o aperto de quatro mãos entrelaçadas em seus opostos lançava na noite uma epifania sem versos, um desabrochar de sorrisos sem qualquer lógica.

Rafael Guerreiro

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

ASPECTOS DA ANSIEDADE

Parafraseando um grande amigo, ressalto em brado aberto: "Há de dar tempo".

Rafael Guerreiro

sábado, 29 de novembro de 2008

SOMBRAS MARÍTIMAS

Em minha vida, há momentos de temidas introspecções. Há dias em que contemplo, aturdido, os abismos que me rodeiam. São efervescências, lucubrações sem fim trazidas no seio de um canchal de vitupérios e decantações.
Há dias em que me admira a sorte (ou azar) que trago estampado no peito errante. São percepções acerca do conjunto de momentos que formam minha vida. São momentos de abstrações acerca dos fatos e vidas que cercaram e ainda cercam meus sonhos.
De dentro para fora, surgem variações acerca da vida, incertezas bem vindas que convivem comigo em estreita relação de mutualismo. Esforço-me em procurar sentidos absortos nesse estardalhaçar de possibilidades. Esforço-me para controlar o medo das perdas certas e purgar ansiedades intrépidas em meio a esse mar de indeterminações.
Ah! Como esse mar me fascina e me lapida! Como é fácil afogar certezas de juízos néscios! Basta um mergulho nos ditames da alma, um olhar privilegiado rumo ao centro das percepções e todas as certezas são deitadas por terra num gesto certeiro, clara demonstração de inegável superficialidade.
É nesse mar eterno que resido, procurando abrigo em conchas submarinas onde ainda resiste o oxigênio. Procuro alimento incerto em fauna e flora nativas e estranhas, frutos desse mar de águas turvas e oblíquas.
Mas é bem aí que, de tempos em tempos, recebo visitas de correntes mornas, onde lanço meu corpo em obtusas manobras, e deixo meu peso ao sabor das marés. Como um escafandrista, pairo por sinuosidades longínquas, sombras onde reencontro infâncias e sabores. Por lá, nas cadências abissais, divirto-me com carrinhos de madeira e estilingues de precisão para depois retornar às velhas conchas, onde ainda resiste o oxigênio.
Quando volto das sombras, respiro um ar ainda úmido, de odores marítimos que se perdem com o decurso do tempo.
Quando volto das sombras, meto-me a ler ficções de Borges, procurando deixas que me permitam silenciar rumores, acalmar angústias e preservar os sonhos.

Rafael Guerreiro

terça-feira, 2 de setembro de 2008

NOVAS VIAGENS

Eis que começou assim de repente e acabou num susto seco. Foi de supetão e não teve mais jeito. De súbito, os cinco anos que lhe foram contados antes de lhe serem entregues haviam se esvaído sem qualquer pudor.
Ao longo dos anos, ele perambulava pelas ruas e pela praça com as mãos nos bolsos da calça jeans sem qualquer pretexto.
Fumou, bebeu, deu risadas, escreveu, riscou, amou e chorou. Quando se deu conta, seus olhos ganharam uma quebra de página, um pasmem sem qualquer grito.
Na face, um sulco de vida entortava a pele ainda rija. Eram as conseqüências da noite que tanto amava.
E agora, não desejava o final, pedia uma sobrevida egoísta na demonstração mais humilde de que ainda queria um pouco mais, só um pouco mais...Talvez sejam as pessoas daquele lugar, ou ainda daqueles cinco anos de noites, letras e sonhos.
Mas ele sabe que seu pedido traduz-se numa bagatela. Logo sacode a cabeça e lancina o olhar. Eis o caminho a tua frente.
Ele olha para o lado e, feliz, sabe que viveu. Sabe que agora as viagens serão mais altas. Lembra-se então dos que caminharam com ele e que agora preparam-se para viajar.
Deixa de graça um sorriso maroto e, numa prece quieta, evoca sua sinceridade para desejar baixinho que um dia todos viajassem juntos...




Rafael Guerreiro

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

ENTRE AMIGOS

Havia um arquipélago de seduções onde eu dormia estéril. Minhas habilidades físicas jaziam rotas no silêncio desmedido da noite.

Reinava um sonho preto-e-branco de intenções veladas. Os poucos recortes que sobraram dele são como brilhos caóticos de um diamante impalpável.

As poucas recordações do sonho, por qualquer motivo ainda excêntrico, congregam apenas imagens foscas de um lugar distante, onde acontecia um diálogo sério, versando sobre identidades e papéis.

Alguns livros esparramados por uma mesa onírica ditavam o tom erudito do diálogo. Neste momento, meu corpo não era mais que a imagem taciturna do vazio. Nos instantes do sonho, a vida acontecia em outro lugar, distante, entre amigos. E meu corpo era apenas a testemunha de uma atividade clarividente.

Era um lugar de pessoas sérias, mas não trago comigo mais que suas vozes temperadas. As faces por trás das vozes são como um mistério metafísico incapaz de qualquer adivinhação. Senti-me por alguns instantes como que em meio a profetas de palavras certeiras.

Deito agora ao fio da pena apenas as impressões imprecisas do lugar onde estive. Lanço no papel rabiscos de um rascunho grosseiro, caricaturas ensangüentadas feridas por navalhas de letras.

Mas nas imagens que guardo nos bateres do peito, brota um alvorecer de sentimentos intangíveis. Uma certeza feita de passos n’água e visões diáfanas.

Pressentimentos da volta formavam um risco perplexo entre a junção de mente e corpo. Nas paragens de cá as horas corriam alucinadas e demandavam o retorno.

Chegava o final da noite e do sonho e acontecia ali o retorno às paredes do quarto e às penumbras do sol ainda por nascer. Aos poucos, meus olhos se abriram ainda aturdidos e confusos de luzes e sombras.

O dia nascia. Levantei-me da cama e, de súbito, abri a janela num gesto certeiro. Contemplei o canchal de luzes num silêncio aturdido e fiz do momento uma prece humilde.

Respirei o ar da manhã como quem aspira certezas atávicas e desejei o dia num ardor de pulso e alma. Guardei num soluço uma alegria singela e senti-me feliz por saber que naquele dia tão lindo respirei satisfeito sabores de longe.

Rafael Guerreiro

EM BUSCA DO SOL

Minha namorada e eu recentemente fizemos uma viagem de ônibus cruzando o sul do Estado de Minas Gerais.

Pelas cidades que passamos, acabei por conhecer várias pessoas. Eram homens e mulheres que passavam pelas rodoviárias, indo e voltando dos mais variados lugares.

Alguns traziam no peito uma saudade antiga, uma tristeza das mais solitárias; outros saíam forçados de seus lares, tentando a vida do jeito que podiam. Mas todos, de certa forma, traziam consigo suas próprias lembranças. Eram narradores solitários que nunca esperaram por qualquer ouvinte interessado em suas histórias.

Quando regressávamos a Franca, passamos pela rodoviária de uma das muitas cidades que paramos. Eu estava cansado e faminto. Esperava ansioso o ônibus ainda incerto, pois no guichê da rodoviária, nos disseram que as passagens haviam se esgotado e, por isso, talvez não poderíamos chegar a Franca no mesmo dia. Mas mesmo assim, ficamos na madrugada esperando pela sorte.

Enquanto esperávamos, um viajante qualquer se aproximou. Tratava-se de um vendedor ambulante aguardando seu ônibus. Era da Bahia e trazia consigo uma enorme caixa de isopor equilibrada na cabeça e um violão junto ao ombro.

Num primeiro momento não dei conversa, mas, de súbito, passamos a conversar enquanto o ônibus demorava. Então, contou-me que já viajou por todo o Brasil, procurando as festas e jogos de maior calibre, onde se alojava tentando vender suas latinhas de bebida. Quando terminavam as festas e os jogos, juntava seus pertences e partia para outras paragens, em busca do sol.

Falou ainda que diante das muitas andanças que fazia, passou a colecionar os bilhetes das viagens. De tão exóticas e distantes - dizia ele - mereceram ser postas numa caixa bem guardada em sua casa.

Mas no meio do assunto, sem cerimônias, foi-se embora tomar o ônibus que acabara de chegar. É uma pena, porque ele se foi e não tive tempo de saber o porquê de carregar junto com tamanha caixa e peso um violão pendurado com custo junto ao ombro. Ora, se estava trabalhando, acredito que não teria muito tempo para tocar músicas, tão pouco apresentá-las ao público.

Foi-se embora e sumiu na multidão. Nunca saberei de fato o que pretendia com o violão. Resta-me apenas imaginar alguma coisa, um sentido para aquele instrumento.

Talvez pretendia trazer em seus tocares a lembrança de sua terra, quiçá um hino triste de sua sina de viajante. Poderia ainda ser o violão apenas um alívio que encontrou para suportar a solidão de tantos quartos estrangeiros pelos quais passou.

Mas não teve jeito. Foi-se embora deixando-me com a curiosidade aguçada e um sentimento inacabado.

Em minha memória, ficaram apenas uma caixa de bilhetes de viagem e a imagem do violão, que por certo ressoará melodias de lugares distantes, tocadas na toada triste do viajante em busca do sol.

Rafael Guerreiro