sexta-feira, 3 de julho de 2009

OSSOS DO OFÍCIO

O cidadão chegou ao bar procurando um remédio. Pediu um "rabo de galo" e o bebeu num gole fundo. Sarou das tragédias.
Pediu também um mastigo de ontem e comeu ensalivando a boca.
O cidadão não se importava com mais nada. Vencido o dia, pôs língua para a vida porque naquela hora, e só naquela, sagrava-se rei de um momento de fartura.
Deixou o pranto das horas para depois e tascou nos lábios um sorriso aberto, palestrando e rindo para todos, mesmo que os outros não rissem tanto.
O cidadão era coveiro e já enterrou mais finados do que podia suportar. Seus clientes são os mais impacientes, não aceitam espera. Se o coveiro não lhes atende rápido, logo se derretem de tanto incômodo, sem cerimônias.
Era essa a sua profissão e segurou a vida no cabo de uma pá de cal sem deixar ninguém esperando. E pelas suas mãos, muitos descansaram em paz na certeza de um túmulo hermético.
O coveiro trabalhou muito, fez muitos enterros. A cal já havia lhe cortado a carne como navalha e o cheiro das carneiras cheias e apodrecidas e das flores fúnebres há muito lhe estragou as narinas.
Suportou ainda as lágrimas de tantos corações partidos e desolados despedindo-se dos seus pela última vez. E viu que, diante da morte, de nada adiantavam os lamentos.
E de brinde, sem esforços, há tempos havia decorado as exéquias.
Assim, depois de tantos enterros, chegou ao bar procurando um remédio. Queria esquecê-los, assim como as choradeiras. Queria, ao menos por um dia, esquecer os semblantes fechados que encontrava pelos dias de profissão.
Ficou de tal forma ensandecido que sua vontade era mais de caçoar dos defuntos, chamar-lhes apresuntados, medir-lhes a febre, pintar-lhes o rosto com caretas ou até mesmo fazer piadas com seus nomes diante de suas famílias; qualquer coisa capaz de quebrar o clima fúnebre dos dias de profissão.
Mas não tem jeito. Dia após dia, impacientes, os defuntos o esperaram, desejando que lhes arrume a cama e bem rápido.
Não adianta o coveiro lhes tratar com ironia. Seus olhos cerrados não enxergam nada, não participam da brincadeira, tampouco possuem senso de humor e o coveiro terminaria por rir sozinho.
E depois de pensar em tudo isso, já risonho de tanto remédio, o coveiro suspirou num desalento incomodado e lançou um pensamento alto, divagando consigo mesmo em tom resignado:
- Ossos do ofício!

Rafael Guerreiro

segunda-feira, 22 de junho de 2009

AMOSTRA GRÁTIS

Defronte ao bar onde eu estava há um salão de cabeleireiros com uma enorme janela de vidro para a rua. Uma garotinha contando seus 10 anos veio lá de dentro, parou diante da janela e começou a me olhar.
Apesar de traquinas, já trazia consigo uma das armas femininas: saber lançar olhares como punhais. É bem verdade que os dela ainda não passam de meros canivetes cegos, mas capazes de ferir seus pares!
Olhava-me numa altivez cômica, como se o mundo fosse ela. E quando percebeu minha indiferença, apelou para as caretas! Queria chamar minha atenção.
Brincou, brincou, brincou....Se lambrecou toda com a minha imagem, e quando se satisfez deu de ombros como quem se garante e se virou leve, despedindo-se com um andar solene mal ensaiado, forçando o salto do sapatinho.
Quando sumia, teve tempo ainda de se virar novamente e me espreitar de rabo de olho, numa inocência que qualquer mulher vivida já perdeu.
Eis uma amostra do futuro...

Rafael Guerreiro

segunda-feira, 23 de março de 2009

SOBRE SONHOS E FOICES

Zé Francisco cruzou aquelas terras com os olhos nos pés. Queria enricar ligeiro, mas foi esmagado pelas contas do patrão.
Era moço opinioso, de visão rija, embora carecesse de instrumentalidades. Escutou o latifundiário enquanto esperava a própria fala contida em lábios trêmulos. Mas faltava-lhe massa no estômago e, por isso, aceitou calado as migalhas do dono da terra.
Calou-se e esqueceu as palavras do seu ensaio, por onde desejava o justo e que jamais foram ditas e ouvidas.
Zé Francisco arou e lavrou aqueles acres, não era de reclame. Não abriu a boca durante o susto da labuta. Não endireitou a espinha sem antes tê-la sentido arder no ângulo agudo.
Cumprido o suplício ensolarado, largou a foice suja, engoliu água morna e fez caminho até a cidade em busca do primeiro sorriso do dia.
Parou diante da madrugada iluminada e bebeu e fumou extasiado, como quem comemorava um repente único. Mas sua alegria trazida num momento seco consumou-se num relance espraiado de sinestesias voláteis. E de sua felicidade fugaz restaram no balcão apenas copos sujos e a imagem de sua fronte ancorada nos braços.
Zé Francisco até tentou, mas quando o dinheiro acabou ninguém pagou pelos seus sorrisos.
E também ele não carecia de clemência. Era moço opinioso, não tinha precisão de esmolas alheias. Se não trabalhou não podia ter, e se algum dia teve já se foi.
Não pediu piedade, não fez palestra como já fizeram outros. Reverberou-se, bateu no peito e saiu na noite maldizendo Belzebu.
Caminhou titubeante naquele escuro de poemas até sentar-se e curvar-se na sarjeta de um espaço hostil.
Calado e sem nome, chorou um choro rangido de desespero, de solidão. E seu rosto pariu uma imolação sem sangue, uma prece que lhe trouxesse um viático para o futuro.
Lembrou-se então das palavras ensaiadas e do porquê de não dizê-las. Lembrou-se das dores e da humilhação, da água morna ao fim do dia. Foi quando seu olhar resignou-se num colapso de sonho e descrença.
Era moço opinioso, mas que tombou com o roçado seco. Havia esquecido o sonho com a foice.
E na cidade escura, no silêncio dos algozes, Zé Francisco ensaiou palavras novas, mas que dessa vez foram ditas e ouvidas claramente numa rezinha triste de conforto suave, entre pai e filho, entre um sofrer e um sonhar.

Rafael Guerreiro

sábado, 21 de fevereiro de 2009

O ESTRANGEIRO

O estrangeiro dormiu uma noite sem instrução. Acordou no crepúsculo de um dia roxo e partiu soletrando passos sem nenhum caminho.
O sol ardia-lhe nos olhos sem qualquer licença e sua obstinação feria-lhe os pés.
Caminhou e saiu da cidade inóspita. Tomou rumo sacro e fez estrada a cada passo. Levou consigo apenas o espírito dos nômades e a paga de um jugo eterno.
No olhar sisudo não se encontravam querências, o ardor sobrepujado que sentia n’alma eram cicatrizes de sentimentos inacabados.
O estrangeiro havia perdido sua pátria, seus antepassados restavam num passado distante e se exilou diante do destino que carregava. Então fez marcha firme e partiu procurando paragens distantes, onde pudesse ser batizado para ser aceito no círculo de fogo de sua tribo.
E no ocaso daquele dia roxo, após longa marcha, quando já lhe faltaram pernas, deitou na relva simples, no aconchego da penumbra, e procurou afastar as aflições de sua alma.
Mas a tribo da qual fazia parte também deitou com ele. Também deitaram seus antepassados, vindos do círculo de fogo.
Deitou, mas não adormeceu. Admirava as constelações numa linguagem muito própria, perdido em devaneios anímicos. Sabia-se pequeno, portador de uma sina lancinante, marcado por um destino não querido, não construído. E desejou um pedido antológico, buscando um batismo de retorno.
Seu rosto sulcado de sol e lágrimas deixou transparecer por instantes um corte de amor, um desvio no olhar, um refugo no peito aberto, um pender de cãs maduras.
Enquanto jazia naquele estado hipnagógico, entre a vigília e o torpor, o vento soprava forte na madrugada nua. E quando seu coração restava nas sombras, ouviram-se passos deitando a relva simples e sussurros de vozes veladas.
As aparições aproximaram-se do estrangeiro, se curvaram até sua nudez e tocaram-lhe a fronte. Variações corriam-lhe a espinha, mas ele se sentiu reconfortado na presença quente daqueles que vinham do círculo de fogo.
Não desejava abrir os olhos, apaixonou-se pelo momento. Voltava naquele instante ao útero perdido e quando se deu conta chorou copiosamente.
Mas naquela relva, durante a roda da madrugada, onde não havia luzes nem civilização, o estrangeiro não foi levado pelos ígneos. Não ainda.
Puseram-lhe no peito uma epifania, uma marca serrada e selaram seu destino com ardores de fogo. Quebraram-lhe a maldição da saudade e da solidão, e libertaram seu coração para a vida.
No batismo de fogo, a plenitude pairou nos olhos do estrangeiro. No batismo de fogo, um conforto súbito ressoou no sangue quente, e uma rara sensação de completude profetizou dias claros de amor.

Rafael Guerreiro

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

DORES DE UM NOVO MUNDO

Não fiz palestra. Deitei ordem triste embaixo de raios de um sol ardido. Segurei o soluço num fluxo inverso e recitei um réquiem.
Mantive rumo certo sem desvio no olhar. Não olhei para trás. Era uma ilha desbravada que se perdia no ocaso.
Entre tremores tramou-se um trilho trépido de olhares marejados. Fiz pressa num caminho de momento, não podia permanecer ali, o tempo urge inóspito. A roda girou mais uma vez e num estalo gerou um passado sem precisão.
Dessa vez não houve gritos, cabeças baixas impediram revoltas. Consumado o presente, deitei passos largos e titubeados, sem vontade, mas com coragem e parti para a outra margem.
Deixei na ilha, a pedidos feitos em língua clara, todos os pertences que um dia foram meus por sentimento.
A correnteza pariu em mim dores e vicissitudes, mas criou de forma esquizofrênica uma tatuagem vermelha, de sangue rubro, de sangue apenas.
Esqueci casa, cartas, presentes e sentidos, parti rápido e sem memória para terras estrangeiras. Na correnteza, foi-se aos poucos esfarelando qualquer memória da ilha, que aos poucos ficava submersa na maré que a deglutia.
Ainda no mar, percebi que a ilha sumiu. Nada resiste ao encontro das águas.
Deixei para os escafandristas a missão de um dia encontrar casa, cartas e sentidos. Bati braçadas rumo a terras estrangeiras.




Rafael Guerreiro

domingo, 8 de fevereiro de 2009

O FIM DAS TORRES DE MARFIM

Era noite alta e ainda assim não havia silêncio. Os brados de altos escalões ressonavam em tímpanos cansados. Era noite e ainda assim não havia amor.
Na cilada da História, das provas e das palavras, era ainda difícil perscrutar os motivos de tanta raiva. Tanta desconfiança emanada de pulsões freudianas e hormônios sinestésicos.
Na cadência das horas, dos minutos e dos olhares, surgiam afoitas investidas selvagens nas falhas dos argumentos, lançadas contra a sorte alheia. Eram tapas fonêmicos, símbolos quase líricos, não fosse o anti-clímax inerente.
Na noite aberta, restavam incólumes as duas torres de marfim herméticas, duas celebridades cômicas, baseadas na desconfiança recíproca.
As torres se digladiavam com armas ilusórias, buscavam ofuscar o marfim hermético uma da outra. Não toleravam o brilho alheio, e por isso lançavam cuspes uma na outra. Não se toleram e os que sobravam ao redor, com um olhar de baixo pra cima, podiam ver e ouvir as armas usadas, puras desconexões fora de contexto, palavras sem reflexão, empoeiradas pela falta de pudor e sensibilidade.
Ao final, após uma cruzada sem Cristo, uma das torres parou, rachada, infiltrada de sulcos no marfim antes alvo.
Com o cerne rachado, sem estrutura, sem pilares, sem estacas e fundamentações, era hora de implodir-se. Desmoronou num vazio insólito de agruras e tártaros, enquanto era observada pela outra torre também ferida.
E a torre que se julgava a mais alva, a mais elevada, com fundamentos mais sólidos, com estacas mais fundas, palavras mais certeiras e ideias sublimes, foi justamente esta que se implodiu da mesma forma, não por corrosões, não por ferimentos, mas sim porque seu marfim avermelhou-se na poeira deixada pela outra. E sua razão perdeu qualquer sentido, pois, já não era alva o suficiente para ser marfim. Sua estrutura, então, lascou-lhe a vida em grossos volumes que caiam por terra desintegrando-a em nada mais que sombras.
A dor da torre mais alta não era perceptível, não era física, era apenas clara consequência de que qualquer brancura, quando na guerra, se avermelha no sangue alheio.


Rafael Guerreiro

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

EPIFANIA SEM VERSOS

No começo, não havia símbolos. Eram apenas certezas universais entre sorrisos.
No começo, um olhar dizia mais que quaisquer palavras, quaisquer atos de amor eram decodificados num sistema invisível, conhecido apenas bilateralmente, por aqueles que amam.
A mágica dos toques e afagos lançava certezas que não desejavam qualquer explicação. Não procuravam as origens dos seus sentimentos. Eram feitos de matéria brilhante, de algo etéreo sem qualquer identificação.
A linguagem do passar das horas era oculta, distinta, alquímica, capaz de acelerar e desacelerar o tempo na cadência que desejassem. Não havia símbolos, não havia linguagem capaz daquela afinidade tão certa e completa. Não havia, portanto, palavras. Eles menosprezavam as palavras, repudiavam suas letras, seus significados. O tato jazia como intérprete universal do amor. O contato, assim, tornava-se próximo, desnudo e sem manobras lógicas, sintáticas.
Essa linguagem de gestos perdurava na noite aberta como um manifesto silencioso. Os seres de símbolos rejeitavam qualquer lógica, qualquer racionalização do momento que sorviam. Por isso, os hemisférios se entrelaçavam sem qualquer pudor. E seus corpos ganhavam significado na medida em que se lançavam na alteridade desconhecida.
No mais, o que viviam não se torna visível nas letras. Não há sequer formas narrativas que se abeirem de relatar aquele momento holístico. E pouco se importavam. Desejam mais perderem-se mutuamente num momento impronunciável.
Naquele universo intangível, um simples olhar serrado deixava de graça mais reflexos que palavras somadas em versos lapidados.
Naquele universo, em seu princípio, o aperto de quatro mãos entrelaçadas em seus opostos lançava na noite uma epifania sem versos, um desabrochar de sorrisos sem qualquer lógica.

Rafael Guerreiro