segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

OLHAR CUBISTA

" Como quereis que os outros vos façam, fazei também a eles" (Lc, 6, 31)
Foi com um olhar cubista de um Picasso triste que o morador de rua olhou para os seus agressores.
O horror escorria-lhe pelas frestas dos dentes da boca de desespero. Enquanto isso, no silêncio da madrugada, despejavam socos e pontapés.
O abstrato o agredia, sorvia-lhe o sono a violência sem significação. E numa cadência de chutes e socos o mundo perdia seu sentido.
O andarilho pedia que parassem, mas a violência era tanta que foi preciso acreditar que um carma era purgado. Nas silhuetas do que lhe sobrava da vida, o espectro do absurdo deixou grafado, como tatuagem, sua marca incurável: cicatrizes de violência, negativas de amor.
Restaram na noite um grito de tristeza, um choro desassossegado daquele que é órfão da vida. Restaram na noite olhos marejados de lágrimas sufocadas, evidências de uma Guernica pessoal.
Sobravam dele apenas retratos de uma poesia triste, onde se cogita não haver vida nem sentido nos dias que passamos. Sobravam dele apenas inspiração para orações dos fiéis e presságios de dias estranhos para os mais velhos. Arrematava consigo todos os olhares do povo, todo o marasmo de mais um dia era quebrado pela imagem de sua face ensangüentada.
E por um instante apenas se sentiu gente, mesmo que para tanto tivesse que sentir dor.

Rafael Guerreiro
*Imagem: Guernica, Pablo Picasso, 1937

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

FRANCA DOS NATAIS BRILHANTES

Tudo iluminado, lojas abertas e cheias. O período do Natal é realmente um momento para reflexões, onde a sensibilidade fica mais a mostra.
Neste tempo, ouve-se falar de muitas alegrias e confraternizações. Há até quem fique mais generoso. Neste tempo não há espaço para crises, quiçá brigas e desentendimentos. O espectro natalino realmente meche com a alma do povo não só aqui em Franca, mas em qualquer lugar do mundo cristão.
As ruas são então decoradas com lindas luzes e ornamentos natalinos. A cidade precisa estar linda para receber o Menino Jesus que está prestes a nascer. E o povo adora, todos passeiam pelas ruas gastando seus décimos terceiros salários. Curioso como o encantamento e a sedução pelas compras transfigura o espírito. Talvez seja a alegria do consumo, talvez apenas a necessidade social de se ver incluído na moda vigente.
Mas, curiosamente, quando o dia vinte e cinco passar e com ele ceder o frisson das compras, ninguém restará que tenha se lembrado do Menino Jesus que, em um dia apenas, já terá crescido e perderá a graça dos bebês, deixará a manjedoura e partirá para o calvário num caminho que ninguém gostaria de acompanhá-lo.
Em um dia apenas os brinquedos e eletrodomésticos com os quais sonhamos o ano inteiro restarão já velhos e novos sonhos de consumo se avizinham. Enquanto isso, pelo caminho do calvário, Jesus, agora homem, ergue solitário sua cruz. Enquanto durar o caminho, desmancharemos os enfeites e apagaremos as luzes que enfeitaram nosso mundo imaginário, onde não há espaço para os horrores com os quais lidamos e de que tanto fugimos.
Olhem todos porque já no dia vinte e seis Jesus parte para o calvário. Curioso como até mesmo Ele deve se apressar, porque logo chega a Páscoa, linda e adocicada com seus chocolates e coelhinhos imaginários, que tanto servem para fazer-nos esquecer o sangue alheio.


Rafael Guerreiro

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

AS TORRES DA CAPELA

Eis que naquela noite o vento soprou forte. O movimento do vento refletia a ansiedade do primeiro beijo. Do lado de dentro, mãos entrelaçadas e abraços carinhosos. Beijos púrpuros de plenitude. Espíritos embalados pela dança do incenso. Toques sutis de aconchego e paz.
De longe, era possível ver as torres da capela. Traziam consigo uma igualdade ímpar. Eram duas, mas tinham um só ponto em comum, um único céu. Por dentro, duas torres, mas um só encontro.
Incenso, desfecho, destinos...O invisível dançava aos olhos delas como que profetizando suas vidas.
O incenso ardia na noite, propagava odores de alfazema e alecrim. Deixava virgem um rastro de amor.
Eros ou Lilith?

Rafael Guerreiro

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

CINZAS DO COTIDIANO


Ao meu lado, apenas o que sobrou do copo de café já frio. Mas por aquelas árvores, por aqueles bancos perscruto sons do passado e, como quem renasce, passo a escutar ruídos antigos, frases e luzes carregadas de história. Aos poucos, ao meu lado surgem protagonistas do mundo de lá, onde o vento é livre e sensível. Rodeiam-me amigos do passado, das alegrias e dos diálogos. Rodeiam-me amores de um beijo apenas. Ao meu lado, histórias fazem adjetivar o dia.
O vento trouxe consigo os ciganos de minha memória. Trouxeram presentes, juntaram-se a mim e ceiamos juntos. Por alguns momentos, deixei de lado o cotidiano para adentrar ao mundo colorido de lá, das cores e dos sons das histórias.
Se busco este mundo é porque pessoas já foram e levaram consigo parte de mim em histórias inacabadas. Momentos incompletos me escaparam das mãos e voaram para longe, deixaram marcas tão lindas quanto uma revolução sem sangue. Deixaram porvir o sabor da descoberta e, para se comunicarem comigo, elegeram a poesia. São momentos únicos, leves como água, claros, límpidos e rápidos, mas deixaram marcas profundas, capazes de tombar o dia e reduzi-lo a cinzas levadas pelo vento.
Por estes momentos, carrego lembranças raras, bem guardadas. Por estes momentos, recrio o mundo em infinitas variações de cores e deixo que meus sentimentos ao vento lancem as cinzas do cotidiano.
Rafael Guerreiro