sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

LÁGRIMAS NA CHUVA

Recentemente assisti uma vez mais ao clássico Blade Runner – O caçador de andróides, do aclamado diretor Ridley Scott. O filme é referência dentro da temática da ficção científica. Baseia-se na novela “Do Androids Dream of Electric Sheep?”, de Philip K. Dick. Por suas cenas, nos deparamos com um mundo futurista ficcional dominado pela tecnologia aplicada na fabricação de seres "replicantes" (andróides produzidos para superar os humanos em habilidades e inteligência, feitos para trabalhar nas colônias espaciais).
Assisti à versão remasterizada (The director’s cut), com novas cenas e um final diferente daquele apresentado na versão original.
Para esta crônica, extraio do filme um discurso de um dos personagens principais, o vilão “replicante” Roy Batty, estrelado por Rutger Hauer. Em uma cena magistral o tal vilão salva da morte aquele que por profissão deveria eliminá-lo, o caçador de andróides Deckard, estrelado por Harrison Ford.
Durante todo o filme é relatada a busca incessante do andróide por expandir seu tempo de vida, pois havia sido programado para se extinguir após um tempo extremamente curto.
O filme gira em torno dessa crise existencial sofrida por este personagem de vida curta, que busca incessantemente passar a diante as experiências pelas quais passou; ocorre que Deckard foi pago para eliminá-lo, pois tais seres passaram a representar um forte perigo para os humanos devido à sua superioridade física.
Mas não se preocupem, não adentrarei mais aprofundadamente ao mérito do filme, até para preservar aqueles que ainda não o assistiram. Vou direito ao ponto.
Então, na tentativa de demonstrar que sente o fim de sua existência assim como um autêntico ser humano, o personagem de Hauer lança aquele que, para minha humilde experiência cinéfila, é o mais antológico dos discursos (pelo menos nos filmes de ficção científica já feitos). Seguem as suas memoráveis palavras:
“Vi coisas nas quais vocês nunca acreditariam. Naves de ataque em chamas perto da borda de Orion. Vi a luz do farol cintilar no escuro no Portal de Tannhaüser. E todos esses momentos se perderão no tempo como lágrimas na chuva. Hora de morrer...”
São com essas palavras que trago à tona minhas experiências, minha história emaranhada no cotidiano e o sentido de minha existência.
O personagem fictício, mesmo não sendo humano, queria sê-lo, desejava perpetuar a sua própria identidade. No fundo, como qualquer ser humano, buscava a comunicação com o próximo, com aquele que o sucederia e que o tornaria imortal, nas memórias daqueles que conseguiu cativar.
Como ele, também eu e – assim creio - cada um de nós, busca este mesmo objetivo, de manter-nos vivos nas memórias dos que amamos. Buscamos o conforto de encontrar no próximo a conexão que permita contar quem somos nós mesmos, nossas fantasias e nossos sonhos pueris e lindos por sua singularidade.
Assim como o andróide, também nós, de uma forma ou de outra, trazemos conosco nossas “naves espaciais” e nossas estrelas lindas e brilhantes vistas por dentro, capazes de serem descritas apenas por nós mesmos, em palavras escolhidas para interpretarem nossas próprias experiências. Trazemos conosco a vocação para testemunhar nossa própria história.
Em nossa natureza, carregamos o anseio de poder contar de onde viemos, quem somos e para onde vamos, sem certezas, sem definições, mas com poesia e entusiasmo.
Sabemos que jamais responderemos a tais perguntas, apesar de sua importância indescritível. Mas, para termos apenas um vislumbre das respostas, deixamos que reine a poesia entre o mundo que enxergamos e aquele que não enxergamos.
Dessa forma nos imortalizamos, negamos o nada e seu vazio impedindo que nossos momentos se percam como lágrimas na chuva.


Rafael Guerreiro

Imagem: BladeRunner - O caçador de andróides (Direção Ridley Scott, 1982)

Um comentário:

Cinthia Anhesini disse...

Cara!
Que texto maravilhoso!

Quem, como eu, vive da palavra escrita, não pode deixar de invejar tamanha lucidez impressa.
Muito bom!