quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

O SUMIÇO DO MENTIROSO

Era um senhor astuto, de frases e olhares ardilosos. Trazia consigo ostentações imaginárias e descrevia sempre em suas conversas situações inusitadas. Acostumou a mentir desde que se entendia por gente. Tal prática foi tão exercitada que passou a esquecer quem realmente era.
Mas por de trás das aparências, mentiras eram sutilmente aplicadas, introduzidas no cotidiano como um vírus inoculado.
E o velho mentia, sustentou mentiras por toda uma vida. E mentia e mentia e mentia.... Passou a vida mentindo, descaradamente. É bem verdade que muitas delas nunca serviram para nada, eram apenas reflexos de um espírito inconformado consigo mesmo. Na verdade, representavam farpas trocadas pelo divórcio entre o próprio sujeito e sua idiossincrasia.
Era fato que mais cedo ou mais tarde as tais mentiras se deitariam por terra.
Mas o que assustava era a necessidade que o tal sujeito tinha de mentir. O homem incorporou tanto a mentira que mais lhe parecia uma droga. Usava-se dela como um viciado que passa a vida beirando as bocas de fumo. E por de trás das palavras inverossímeis, o mau cheiro lançava sortilégios que por tanto tempo ludibriavam os inocentes que caíam neles.
E desse jogo, saíram toda sorte de imaginações. O mentiroso mais parecia um artista, falava de como se tornou maçom, mas nunca havia recebido sequer um convite. Dizia com veemência ser profundo conhecedor das leis, dizia até mesmo ser bacharel em Direito, mas na verdade não havia terminado nem o segundo grau. E ainda, por suas mentiras, já viajou o mundo todo, conheceu os Estados Unidos e a França, a Bolívia e a Colômbia. O Brasil, então, conhecia do Oiapoque ao Chuí.
Em suas tramas, conhecia políticos influentes. Todos se admiraram quando disse que fora amigo de Ulisses Guimarães, o político das “diretas já”, e dizia que pouco tempo antes de sua morte havia recebido uma carta do amigo ilustre.
E adorava os detalhes, contava com inconfundível entusiasmo histórias de quando percorreu as matas de minas gerais, onde viu lobos-guarás, onças-pintadas e tantas outras coisas que não caberiam nem mesmo num desenho animado.
Na escola então, nunca havia tirado nota menor que o próprio dez, e acrescentava o gravame de estudar sempre em cima do lombo do cavalo que o conduzia, pois a dificuldade era muita. Detalhe: a nota dez sempre vinha acompanhada de um modesto “honra ao mérito”.
Claro que com tanta criatividade seu altruísmo não poderia ficar esquecido. Às vezes, quando comprava um peru de natal ou alguma outra iguaria mais cara, adorava contar em casa que o havia ganho como recompensa por ter ajudado uma suposta pobre senhora que passava por problemas com seu carro. Era mesmo um “gentleman”!
E assim foi todos os dias, embaralhados, permeados por mentirinhas, por vezes inocentes, por vezes dolorosas, mas nunca mantidas por muito tempo. O fato é que a verdade sobre sua vida aos poucos foi sumindo, nem mesmo ele era capaz de se lembrar, ou talvez não queria.
A sensação que anestesiava quem o escutava era a dó, deixavam passar as mentirinhas para não maltratarem aquela alma pueril. Contudo, era bem verdade que o pavio fora se consumindo ao longo do tempo junto com a paciência e, aos poucos, o exílio social passou a ser aplicado como corretivo. A descrença passou a ser latente entre os ouvintes.
Com ironia e até mesmo com adequada dose de risadas, passaram a lembrar mais das mentiras contadas do que do próprio mentiroso. Foi quando o ostracismo o infectou como que uma doença incurável e degenerativa. Quando ele aparecia, enxergavam apenas um emaranhado de palavras sem valor, guardadas por uma existência sem crédito.
Inconformado, sentiu que precisava mentir mais e mais para se sustentar. Era preciso fazer os outros acreditarem que ele era influente, que conhecia os políticos poderosos, o mundo com suas maravilhas e que viveu uma vida de aventuras. Mas quando abria a boca, os que ouviam deitavam tudo por terra com um simples olhar de descaso.
Mas o velho mentiroso ainda tentava, extraía de sua imaginação resquícios de criatividade, juntava os restos que lhe sobravam e tecia mosaicos imaginários onde misturava verdade e mentira. Era o desespero que lhe acometia. Era a existência que lhe escorria pelas mãos. Não poderia viver agora sem as suas criações. Foram contadas por tanto tempo que agora negar-lhes era o mesmo que ter um membro amputado.
Não! Era preciso mantê-las, porque para ele eram a mais pura verdade. Em meio a suores desesperados tentava se lembrar do que havia sido de verdade, mas as mentiras foram contadas tantas vezes que a barreira entre o falso e o verdadeiro tornou-se delgada demais. Era preciso mantê-las, porque sem elas não havia o mentiroso, não havia mais o seu próprio ser.
Foi quando olhou para baixo e percebeu que seus pés haviam desaparecido. Na verdade, ele todo estava por desaparecer. Na medida que se indagava sobre o que havia sido antes das mentiras, perdia um pedaço de perna ou era um braço inteiro que sumia, apagava-se por completo. Quanto mais a consciência lhe cutucava, mais os membros sumiam. O horror lhe abraçava com garras de onde não era possível escapar. Os olhos arregalados de desespero não queriam acreditar no que viam, mas o corpo se consumia em meio a gritos perplexos.
O povo assistia ao fato inédito sem muito o que comentar. Sufocado, o velho tentava a todo custo se manter equilibrado, mas faltaram-lhe pés, pernas e metade do tronco.
Então, o velho percebeu o vexame, era necessário ocultar aquele sufrágio pelo qual passava, o povo não poderia vê-lo naquela condição. E numa última tentativa desesperada de provar para si e para todos que nada daquilo acontecia, gritou para que o ouvissem – “É mentira! É mentira! É mentira!”.
Mas ninguém acreditou. E o velho mentiroso desaparecia balbuciando e babando horrorizado, enquanto se despedia da boa-fé de todos.

Rafael Guerreiro

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