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Assisti à versão remasterizada (The director’s cut), com novas cenas e um final diferente daquele apresentado na versão original.
Para esta crônica, extraio do filme um discurso de um dos personagens principais, o vilão “replicante” Roy Batty, estrelado por Rutger Hauer. Em uma cena magistral o tal vilão salva da morte aquele que por profissão deveria eliminá-lo, o caçador de andróides Deckard, estrelado por Harrison Ford.
Durante todo o filme é relatada a busca incessante do andróide por expandir seu tempo de vida, pois havia sido programado para se extinguir após um tempo extremamente curto.
O filme gira em torno dessa crise existencial sofrida por este personagem de vida curta, que busca incessantemente passar a diante as experiências pelas quais passou; ocorre que Deckard foi pago para eliminá-lo, pois tais seres passaram a representar um forte perigo para os humanos devido à sua superioridade física.
Mas não se preocupem, não adentrarei mais aprofundadamente ao mérito do filme, até para preservar aqueles que ainda não o assistiram. Vou direito ao ponto.
Então, na tentativa de demonstrar que sente o fim de sua existência assim como um autêntico ser humano, o personagem de Hauer lança aquele que, para minha humilde experiência cinéfila, é o mais antológico dos discursos (pelo menos nos filmes de ficção científica já feitos). Seguem as suas memoráveis palavras:
“Vi coisas nas quais vocês nunca acreditariam. Naves de ataque em chamas perto da borda de Orion. Vi a luz do farol cintilar no escuro no Portal de Tannhaüser. E todos esses momentos se perderão no tempo como lágrimas na chuva. Hora de morrer...”
São com essas palavras que trago à tona minhas experiências, minha história emaranhada no cotidiano e o sentido de minha existência.
O personagem fictício, mesmo não sendo humano, queria sê-lo, desejava perpetuar a sua própria identidade. No fundo, como qualquer ser humano, buscava a comunicação com o próximo, com aquele que o sucederia e que o tornaria imortal, nas memórias daqueles que conseguiu cativar.
Como ele, também eu e – assim creio - cada um de nós, busca este mesmo objetivo, de manter-nos vivos nas memórias dos que amamos. Buscamos o conforto de encontrar no próximo a conexão que permita contar quem somos nós mesmos, nossas fantasias e nossos sonhos pueris e lindos por sua singularidade.
Assim como o andróide, também nós, de uma forma ou de outra, trazemos conosco nossas “naves espaciais” e nossas estrelas lindas e brilhantes vistas por dentro, capazes de serem descritas apenas por nós mesmos, em palavras escolhidas para interpretarem nossas próprias experiências. Trazemos conosco a vocação para testemunhar nossa própria história.
Em nossa natureza, carregamos o anseio de poder contar de onde viemos, quem somos e para onde vamos, sem certezas, sem definições, mas com poesia e entusiasmo.
Sabemos que jamais responderemos a tais perguntas, apesar de sua importância indescritível. Mas, para termos apenas um vislumbre das respostas, deixamos que reine a poesia entre o mundo que enxergamos e aquele que não enxergamos.
Dessa forma nos imortalizamos, negamos o nada e seu vazio impedindo que nossos momentos se percam como lágrimas na chuva.
Rafael Guerreiro
Imagem: BladeRunner - O caçador de andróides (Direção Ridley Scott, 1982)
Um comentário:
Cara!
Que texto maravilhoso!
Quem, como eu, vive da palavra escrita, não pode deixar de invejar tamanha lucidez impressa.
Muito bom!
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