segunda-feira, 23 de março de 2009

SOBRE SONHOS E FOICES

Zé Francisco cruzou aquelas terras com os olhos nos pés. Queria enricar ligeiro, mas foi esmagado pelas contas do patrão.
Era moço opinioso, de visão rija, embora carecesse de instrumentalidades. Escutou o latifundiário enquanto esperava a própria fala contida em lábios trêmulos. Mas faltava-lhe massa no estômago e, por isso, aceitou calado as migalhas do dono da terra.
Calou-se e esqueceu as palavras do seu ensaio, por onde desejava o justo e que jamais foram ditas e ouvidas.
Zé Francisco arou e lavrou aqueles acres, não era de reclame. Não abriu a boca durante o susto da labuta. Não endireitou a espinha sem antes tê-la sentido arder no ângulo agudo.
Cumprido o suplício ensolarado, largou a foice suja, engoliu água morna e fez caminho até a cidade em busca do primeiro sorriso do dia.
Parou diante da madrugada iluminada e bebeu e fumou extasiado, como quem comemorava um repente único. Mas sua alegria trazida num momento seco consumou-se num relance espraiado de sinestesias voláteis. E de sua felicidade fugaz restaram no balcão apenas copos sujos e a imagem de sua fronte ancorada nos braços.
Zé Francisco até tentou, mas quando o dinheiro acabou ninguém pagou pelos seus sorrisos.
E também ele não carecia de clemência. Era moço opinioso, não tinha precisão de esmolas alheias. Se não trabalhou não podia ter, e se algum dia teve já se foi.
Não pediu piedade, não fez palestra como já fizeram outros. Reverberou-se, bateu no peito e saiu na noite maldizendo Belzebu.
Caminhou titubeante naquele escuro de poemas até sentar-se e curvar-se na sarjeta de um espaço hostil.
Calado e sem nome, chorou um choro rangido de desespero, de solidão. E seu rosto pariu uma imolação sem sangue, uma prece que lhe trouxesse um viático para o futuro.
Lembrou-se então das palavras ensaiadas e do porquê de não dizê-las. Lembrou-se das dores e da humilhação, da água morna ao fim do dia. Foi quando seu olhar resignou-se num colapso de sonho e descrença.
Era moço opinioso, mas que tombou com o roçado seco. Havia esquecido o sonho com a foice.
E na cidade escura, no silêncio dos algozes, Zé Francisco ensaiou palavras novas, mas que dessa vez foram ditas e ouvidas claramente numa rezinha triste de conforto suave, entre pai e filho, entre um sofrer e um sonhar.

Rafael Guerreiro

2 comentários:

Anônimo disse...

e foi atendido?
ahh foi né?
hahahah cara, vc anda criando climas de suspenses surpreendentes...
vc anda narrando coisas boas Guerreiro, com elementos maravilhosos...
vou aproveitar que vc tá inspirado e decidir logo o próximo tema da revista!

abração

Lívia Inácio disse...

Nossa!

Muito lindo!

Esse é o tipo de narrativa que nos deixa sem palavras e com um nó na garganta! o.O