sábado, 21 de fevereiro de 2009

O ESTRANGEIRO

O estrangeiro dormiu uma noite sem instrução. Acordou no crepúsculo de um dia roxo e partiu soletrando passos sem nenhum caminho.
O sol ardia-lhe nos olhos sem qualquer licença e sua obstinação feria-lhe os pés.
Caminhou e saiu da cidade inóspita. Tomou rumo sacro e fez estrada a cada passo. Levou consigo apenas o espírito dos nômades e a paga de um jugo eterno.
No olhar sisudo não se encontravam querências, o ardor sobrepujado que sentia n’alma eram cicatrizes de sentimentos inacabados.
O estrangeiro havia perdido sua pátria, seus antepassados restavam num passado distante e se exilou diante do destino que carregava. Então fez marcha firme e partiu procurando paragens distantes, onde pudesse ser batizado para ser aceito no círculo de fogo de sua tribo.
E no ocaso daquele dia roxo, após longa marcha, quando já lhe faltaram pernas, deitou na relva simples, no aconchego da penumbra, e procurou afastar as aflições de sua alma.
Mas a tribo da qual fazia parte também deitou com ele. Também deitaram seus antepassados, vindos do círculo de fogo.
Deitou, mas não adormeceu. Admirava as constelações numa linguagem muito própria, perdido em devaneios anímicos. Sabia-se pequeno, portador de uma sina lancinante, marcado por um destino não querido, não construído. E desejou um pedido antológico, buscando um batismo de retorno.
Seu rosto sulcado de sol e lágrimas deixou transparecer por instantes um corte de amor, um desvio no olhar, um refugo no peito aberto, um pender de cãs maduras.
Enquanto jazia naquele estado hipnagógico, entre a vigília e o torpor, o vento soprava forte na madrugada nua. E quando seu coração restava nas sombras, ouviram-se passos deitando a relva simples e sussurros de vozes veladas.
As aparições aproximaram-se do estrangeiro, se curvaram até sua nudez e tocaram-lhe a fronte. Variações corriam-lhe a espinha, mas ele se sentiu reconfortado na presença quente daqueles que vinham do círculo de fogo.
Não desejava abrir os olhos, apaixonou-se pelo momento. Voltava naquele instante ao útero perdido e quando se deu conta chorou copiosamente.
Mas naquela relva, durante a roda da madrugada, onde não havia luzes nem civilização, o estrangeiro não foi levado pelos ígneos. Não ainda.
Puseram-lhe no peito uma epifania, uma marca serrada e selaram seu destino com ardores de fogo. Quebraram-lhe a maldição da saudade e da solidão, e libertaram seu coração para a vida.
No batismo de fogo, a plenitude pairou nos olhos do estrangeiro. No batismo de fogo, um conforto súbito ressoou no sangue quente, e uma rara sensação de completude profetizou dias claros de amor.

Rafael Guerreiro

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