sábado, 18 de agosto de 2007

O DESEJO DO MENDIGO

Não havia lugar para ele. Seu refúgio foi se instalar nos espaços existentes por debaixo da concha-acústica da praça do centro da cidade. Cobria com trapos o corpo cheio de sulcos e feridas e usava pedaços de papelão como cama. O frio e a rejeição seguiam-lhe. Contra o frio usava os goles de pinga ministrados homeopaticamente; contra a rejeição usava suas ânsias por dignidade.
Neste dia comera apenas as sobras das pipocas murchas que os pipoqueiros do centro da cidade não venderam. Não tomava banho havia dias, passava frio e fome. Olhos atentos nas pessoas que passavam. O abraço do pai em seu filho, o beijo dos namorados sentados nos bancos, o sorriso da criança que corria atrás dos pombos...Ardia-lhe o desejo de amar e de ser amado, mas o chão era duro e a noite fria. No rosto sisudo as marcas do sol e de uma vida sem muitos sorrisos.
Nada, nenhuma perspectiva de transformação sondava sua realidade. Tudo era demasiadamente caótico e a consciência de si diante desse caos trazia-lhe apenas mais sofrimento. Ele olhava ao seu redor e via vários caminhantes que como ele bebiam e sofriam. Como todos naquela situação, enrolava-se debaixo de seu cobertor e dormia na tentativa de encontrar o mais profundo esquecimento. A realidade, entretanto, acordava-o com leves toques de ironia e sarcasmo.
Entre eles todos se olhavam sorrateiramente com olhos vacilantes. Durante o silêncio da madrugada ouviam-se alguns sussurros, tosses, gemidos de dores e delírios daqueles que dormiam pelos bancos e pelos espaços encobertos, tentando ocultar as marcas de sua humilhação.
Acordava algumas vezes durante a madrugada, conferia suas coisas e procurava algo para comer. Quando não havia nada e a dor da solidão causava-lhe uma angústia bruta e doída, quando o frio era muito e não havia mais bebida nem esperança, seu remédio era caminhar até a imagem branca imponente do Cristo de braços abertos que fica bem diante de onde ele dormia. Gostava daquele momento. Ele não sabia rezar, não sabia como chamar a Deus, mas se sentia acolhido naquele encontro místico entre o homem e a estátua do Sagrado. Não compreendia onde poderia estar Deus, mas sentia que sua existência ganhava sentido naquele encontro transcendental. Naquela noite, em meio às luzes dos postes e ao ruído da corrente elétrica passando pelos fios de eletricidade, ele se sentou nas escadarias da Catedral, chorou e procurou respostas diante do Cristo de braços abertos. Por ele passavam angústia e medo. Sua cabeça transbordava num caleidoscópio de sentimentos e pensamentos contraditórios por onde a embriagues regia o tom da perplexidade.
Não suportava mais a solidão e a indiferença. Ele olhava para o Cristo de braços abertos e sem motivos pediu perdão, meio que por necessidade, meio que por temor. Naquele momento sonhou como uma criança e desejou que no mundo ele tivesse um lugar. Deitou-se e com um sorriso infantil aos poucos adormeceu, embebido em sua alegria miúda. O dia chegava e ele não mais acordou. Morreu dormindo nas escadarias da Catedral. Enterraram-no sem cerimônias. Os demais apossaram-se de seus pertences e logo outro caminhante se instalou onde ele dormia. Enquanto isso, na cidade da Franca continuam os mesmos sussurros, tosses e gemidos de dores por entre as madrugadas. Na cidade da Franca o cotidiano segue seu ritmo enquanto o Cristo de braços abertos acolhe aqueles que poucos enxergam.
Rafael Guerreiro

2 comentários:

Anônimo disse...
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Thiago Saes disse...

Parabéns, Guerreiro... final sensacional desta crônica!