sábado, 8 de março de 2008

RECORDAÇÕES DA TERRA DOS VIVOS

São ainda pujantes as sendas do passado entrelaçadas por entre as sinuosidades do presente. Na infância, as horas tendem a se perpetuar em cada instante, em cada sensação nova que preenchia meus pensamentos e sorrisos.
Por aqueles dias recheados de um brilho intenso e leve, onde o movimento dos instantes era perene, criando a escassa impressão de que o tempo não existia, era eu que por mais que sofresse as inconformidades alheias sentia antes em mim a presença de um Deus concreto, incapaz de se mostrar nos elementos de qualquer teoria. Eu podia segurá-Lo na mão, senti-Lo encarnado em mim tão concretamente como qualquer maçã que eu comia com gosto.
Nas manhãs de sol, onde visões diáfanas enchiam de cor e vida o vaso novo que eu trazia em mim, eu voltava meus interesses todos para o desvendar de enigmas de uma vida curta ainda. Eram os movimentos dos quais hoje já não me disponho, eram sutilezas de uma alma incólume dos mistérios invisíveis que viriam a permear fatalmente apenas o mundo dos adultos. Mas como eram doces aqueles enigmas, como traziam em si paladares fortes de iguarias incertas e distantes. Como aquele tato, aquele paladar, aquele olfato e aquela visão eram tão simplesmente certas, postas diante de mim nitidamente como nada jamais ousou apresentar-se.
Era essa a certeza que trazia até mim esse Deus de quem a pouco falava. Eram essas as sensações que a passos lentos e titubeados foram aos poucos construindo em mim estalactites, fundações de uma gruta absorta, inexoravelmente infinita, formada a duros custos na medida em que minha idéia do divino deixava irremediavelmente meus sentidos, minha concretude tão certa e palpável para percorrer agora apenas as incertezas de sinapses confusas e obscurecidas. Era esse o legado advindo da queda daquele maravilhoso, porém agora acanhado, anti-mundo de negação a tudo o que não se podia ver nem tocar.
E como o tempo me empurrou para o colapso inescusável de meu próprio parto. Como foi que aos poucos minhas certezas foram lentamente aniquiladas por dias insólitos e suas dores vis? Como meus sentidos aos poucos passaram a me enganar e a me confundir? Como, justamente eles, meus sentidos nos quais eu depositava romanticamente minhas certezas passaram agora a negar-me as cores e luzes que antes somente eu avistava em meus próprios sorrisos? Não sei como o processo se deu. Não sei como permiti a mim saciar-me mais do vinho que das belas uvas de outrora; mas o que restaram dos sorrisos e de todo aquele mundo sortido de paladares fortes e marcantes, são na verdade tentativas de negar o implacável fluxo do tempo. E por este exercício vital, bem pouco ainda consigo enxergar daquele antigo Deus por onde tudo fazia sentido. Era Ele imerso em sinestesias multicores, mas agora respira apenas de tempos em tempos, quando, despido de minhas verdades sérias, alço vôo em direção aos ventos de outrora, que insistem em querer arejar meu pesado músculo que dolorosamente perdeu-se nos meandros de abstrações sem nenhum sabor.

Rafael Guerreiro
Imagem: A Criação de Adão, Michelangelo Buonarroti, 1511. Afresco, 280 x 570 cm. Teto da Capela Sistina (Roma)

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